The Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Contos Author: João da Camara Release Date: April 6, 2010 [EBook #31905] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS *** Produced by Pedro Saborano (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive) JOÃO DA CAMARA CONTOS 1900 _LIVRARIA EDITORA_ GUIMARÃES, LIBANIO & C.ia _108, Rua de S. Roque, 110_ LISBOA CONTOS JOÃO DA CAMARA CONTOS 1900 _LIVRARIA EDITORA_ GUIMARÃES, LIBANIO & C.ia _108, Rua de S. Roque, 110_ LISBOA AS MÃES O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros amarellos. O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as giestas sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava caír a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do tremulo azul celeste uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam sombra. Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para escolher nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, rijas, cujo acido lhe mitigava a sede. Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do granito desfeito. O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio:--«Deite-me isto abaixo, ó mestre, e talhe-me n'esta cara uma suissa como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.» E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de usar. O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom para andar, lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, muito bem ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com ellas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não ha sombras na terra! Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo. Lembrava-se, cheio de saudades, das boas historias, que se contam pela estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando lentamente atraz dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura da poeira sombras de gigantes. O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do quartel! Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se _chó!_ aos burros, pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de malmequeres, e que ellas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amavel, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja. Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia. E, ao pensar na fonte, alargou o passo. É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. E a agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, tão differente do estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos das voltas! Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá passava mais depressa. Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma guarita perdida na treva: --Sentinella, álérta! E elle respondia, engrossando a voz: --Álérta está!... Sentinella álérta! E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste. Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, emquanto a ceia aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e agasalho. E ria feliz com aquella idéa divertida. A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha! Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a chorar a sua pobreza. Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de conselhos. Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; trazia-as sempre comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de coiro, para se não estragarem. E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João. * * * * * Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa. Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á esquerda, crescia basta a herva, regada pela agua de uma fontesita, onde, por mais de uma vez, de madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viuva, viera armar aos passarinhos. Não havia sitio melhor para descançar um bocado. No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas e um queijinho pequeno. É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o calor! Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras, emquanto muito alto, parecendo pontos negros no azul do ceu, umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro morto, que apodrecia entre os rochedos. * * * * * Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e algum tanto abrandára o calor. Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se descobria quasi toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as pedras, com o chapéo de abas largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava. Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle pequeno. --Adeus, ó cachopinho! gritou. --Saude! respondeu o pequeno. Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. Ergueu-se, espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os pés no chão para desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e no bordão, poz-se alegremente a caminho. Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das sementeiras. Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa antes do anoitecer. Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu. As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, constantes no mesmo logar, batendo muito as azas. Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o caminho que havia de tomar. Passava a mão pela cara, devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito, sorria-se para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação. E que tentação não era!... Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul! A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa de rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas tristezas! Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles cabellos brancos, muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viuva. N'aquelles olhos meio apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma saudade... E elle parado ali... cheio de duvidas! Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta fronteira a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de azul, a porta vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as lagrimas, trazendo-lhe o coração que levára. E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle? E por fim quando se resolveu... tomou para a esquerda. Pobre mãe! O BAILE DOS VELHOS Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros. Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa. Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo:--quem não foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma. A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação. Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um tropheu, do outro lado da casa. Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cosinha, e que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa? O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado. Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar. O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canellas do mestre-escola. A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz, ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio seculo, se sorriam e namoravam. Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher. --Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento. Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos. A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias. E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de cabeça. --Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do officio. --E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, continuando a rir. Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento. --Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír esfalfada num tropeço, ao pé da lareira. --Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor. E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso. Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros! * * * * * Mas o melhor foi a ceia. O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. Imaginem! Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam, por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas. Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para baixo. Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites aos assistentes. --O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma colherinha de canja, tia Ignez? E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha mettida na enorme terrina, lançava em redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem pedisse. --Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção! --Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato. Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados. Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos para abrir o appetite. Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam cahindo. O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha. O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete. Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a meza defronte do padeiro. --Sabem, meus senhores?... Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor... Ora adeus! O que é isso, sr. professor? O copo maior... Então? O vinho é o sangue dos velhos. O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando á luz a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo, teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada. --Meus senhores... começou. Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella festa, puzeram-se ellas a gritar: --Basta! Basta! Não queremos tristezas! Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas brancas. Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, resmungando. O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua mocidade. Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam. --E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella! --Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na bocca. Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se. --Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada. --É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por cima da meza, de collete já todo desabotoado. Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar. --E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas. --Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da mão. --Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar. A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda commovida: --Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo! E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola. --Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não oiço a voz. --Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui... --Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que vocemecê foi. * * * * * Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir. O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno mal combatido. Havia longos silencios e bocejos profundos. Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a Josepha ao quarto. E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume. Pararam todos á porta. Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o d'uma serena meia claridade. O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra. Havia cincoenta annos! A OUTRA Era em fins d'agosto, á hora do meio dia. Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias. Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram a casa para jantar e socegar um pedaço, durante a sesta. Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos salgueiraes, que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pateos, com os varaes aprumados, pareciam, como n'um espreguiçamento, dispôr-se para o somno. O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos, reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de scintilações, como pedacinhos de metal. Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quasi a trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos. Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na frente. Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, feliz, fresquinha como uma flôr, com o seu vestido de linho muito engommado. Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes. --Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa cheia e cartuxeira vasia. * * * * * Tempos!... Tempos! Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido áquella hora. Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da janella e, com as faces incendiadas, o ouvido attento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr em fio as lagrimas silenciosas. E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os outros:--Coitadinha! * * * * * O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que passára! Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco mais, ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira! Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle prégado no proprio dia em que dera por aquelles amores! O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, viera buscal-a por um braço, arrastára-a pela escada até ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas:--Senhora! E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera de beijos. Ainda não pensára n'aquillo...! Pois tão nova ainda, havia de assim deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um conquistador! Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a elle, o que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera. Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá de fóra vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera. Junto da porta crescia uma roseira, que mettêra para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos. O mestre-escola approximou-se da janella e esteve por algum tempo respirando aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que recordações. Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte. O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento languido, vergando a um suspiro da noite. O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros resignado. --É preciso casar-te, não ha remedio. Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia. Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae consentira no casamento! Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella historia! * * * * * Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma caçada a que iria tambem o José Miguel. Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta. --Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora que está á sua espera no adro! --Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio. E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala verde, que usava havia dez annos. --Adeus! disse ao José Miguel com máu modo. --Sr. Eustachio...! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e atarantado. E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, detraz das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe sorria por entre muitas lagrimas. --Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para o outro. --Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje m'as has de pagar! Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com impaciencia. Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a egreja era no fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto das perdizes. Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem. --Entra, cão! Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O velho caçador fez um movimento de máu genio. Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes. --Que é lá isso? perguntou o Eustachio. --O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. São duas perdizes. E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não ouvisse: --E dois _bigodes_. Elle que os vá contando. E contou-os, e não foram poucos. Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o. --Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior. E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro: --Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda? * * * * * Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado! --Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva! Afinal consentira. Que lhe havia de fazer? O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar a rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo junto da filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó vel-a. O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu. * * * * * O bom tempo tem azas. Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do _Valente_, que voltava da caça. Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; dispunha-a com muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fructa, que perfumavam a casa. Então o _Valente_ entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a correr, enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes bocados de pão de munição. O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um bello ah! de satisfação. --Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a grande cadeira de páu santo. E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas. Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia. Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de novo. Elle então contava façanhas do _Valente_, que, saciada a fome, muito sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, esperava com paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa. Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava. Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam levadas da breca! O que elle andára por aquelles mattos! A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos cantos. Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão cheia! --Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na aldeia. E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas. --São de ferro! O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo. Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar conselhos ao genro, que o escutava attencioso. Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava. --Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este, para a conta. * * * * * Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia alta noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites a chorar. Quando o marido sahia, punha-se á janella e via-o desapparecer por detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O _Valente_ seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a extranhar o dono. Desappareciam depois entre os pinheiros e ella já não podia cá debaixo tornar a avistal-os. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do céu. Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente. * * * * * N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha. --O teu homem? --Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á pressa limpando as lagrimas. O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede. --Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que eu vou procural-o. A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos. --Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára! --Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer? --Ó meu pae!... disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo segurar-lhe os braços. --Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ella é? A Marianna disse que não com a cabeça. Mas não havia de saber!... --A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba! E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente. A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças para gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo. * * * * * Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, tão conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e por fim o _Valente_ rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pateo. Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas. A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu soluçando nos braços do marido. --O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar. --Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito commovido. * * * * * Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa. A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, sorria nos olhos vivos da Marianna. Que se haveria passado? Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou no copo d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse pela distracção, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago. --Não é só na caça que se apanham _bigodes_ sr. Eustachio. --Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje...! O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio beijal-a muito. --Coitada da Marianna! --Então ella... enganou-te? --Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa? A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita. --Com quem?... Dize... Dize... Com quem? Então o mestre-escola, muito córado--era talvez da pinga? entendeu dever deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a esfregar as mãos. O PAQUETE Era no fim da azinhaga--uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno e tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. D'um lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das largas folhas carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, faias brancas e prateadas, loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das longas folhas agudas. No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril. A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que revestia cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado. Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, conduzia do pateo ao vestibulo do palacio. Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual ameaçava ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas. Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos caixilhos de chumbo. Pelo pateo, nos intersticios das pedras, crescia livremente a erva, e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao monotono coaxar das rãs do pantano visinho. O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com pregos de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente. A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão. Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas bem caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra. Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes in-folios amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas latinas, portuguezas e francezas. A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, era occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito, sympathico. Estava vestido á epocha de D. João V. Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra exquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura deixára caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela. O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello sobre a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma passagem de Suetonio. O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo raio brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu para detraz do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco n'uma tinta geral. O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia. O vento do norte entrando pelas fendas das paredes sibillava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de chumbo, as aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio, começavam a piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota extranha d'uma lingua esquecida. Meiados de novembro, as noites eram frias. O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de frio dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, mettendo as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala. Era um velho alquebrado e quasi completamente calvo; apenas duas ou trez madeixas de cabello branco e comprido desciam-lhe da nuca até á golla do casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a edade ia apagando, eram da côr mal definida que teem os olhos dos velhos e os das creanças de mama: tinham comtudo uma expressão doce e melancholica. Ao canto da bocca uma prega vertical, desdenhosa e altiva quando o Conde estava serio, dava-lhe uma expressão de sympathica tristeza quando sorria. Ao toque da campainha accudiu um criado. Era um velho tambem, mais velho do que o Conde talvez. Trazia vestida uma casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe occultassem o estofo accumuladas passagens de linha preta. Entrou curvado um pouco pelo respeito, outro tanto pelos annos. --José, disse o Conde, vae arrancar mais uma taboa á sala do docel a arranja o lume. --Sr. Conde, eu sósinho não tenho forças. --Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias. --O Manuel foi-se hoje embora, sr. Conde. --Foi-se hoje embora! Porque? --Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Ex.ª bem sabe que o homem, coitado, tem familia que sustentar e como os ordenados andam atrazaditos... --Effectivamente, recordo-me de que ha já bastante tempo... Ora, coitado! Mas, porque não me disse elle?... Eu esqueço-me de tudo. Has de dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a taboa. E saíndo ambos, foram a um quarto proximo e arrancaram uma taboa do soalho. O José serrou-a n'umas poucas de partes, feriu lume n'uma pederneira, porque o Conde reprovava os fosforos como perigosos, e, pouco depois, uma chamma viva e alegre trepava pela chaminé. O Conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetonio á luz de um bocado do seu palacio. Tinham-se ido as taboas pouco a pouco e já quasi não restavam senão trez quartos completos, o do Conde, o do José e a livraria. Taboas, vigas, portas e janellas tinham-se desfeito em cinzas. E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da chaminé do palacio, sorriam tristemente e diziam: --Coitado! Mas o Conde continuava alegre e indifferente. Como até ali nada lhe faltára, Deus sabe á custa de quantos sacrificios do pobre criado, não pensava no estado de miseria a que se achava reduzido ou, para melhor dizer, não queria pensar. Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com um certo ar entre familiar e protector, com os lavradores que o estimavam e gostavam de ouvil-o. Entrava nas choupanas mais pobres, e afflicto com a miseria que n'ellas encontrava, dizia baixinho para o velho José, que o acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo do braço: --José, deixa um pinto em cima da mesa para esta pobre gente festejar o domingo. E saía tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das criancinhas, que olhavam para elle com os seus meigos olhos grandes, cheios de espanto e de curiosidade. O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saia momentos depois, levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro e de carne, com os quaes e com a ajuda de mais uma taboa o Conde havia de jantar n'aquelle dia. E o Conde continuava alegre e passava os dias conversando, como elle dizia, com os seus auctores favoritos e entretendo a imaginação com os sonhos doirados d'um futuro melhor. Tinha um filho. Havia trez annos que o seu genio desleixado o obrigára a partir para o Brazil, na esperança de, á força de trabalho, reparar os desastres da fortuna. E não fôra a ambição que o levára tão longe. Não ignorava elle a maneira como se sustentava o Conde e o seu genio altivo custava-lhe sujeitar-se á compassiva esmola dos aldeãos. Um dia, deu parte de suas tenções ao pae, mostrando-lhe a conveniencia d'aquella partida, occultando-lhe porém uma grande parte da verdade com receio que a revelação d'ella fosse um golpe fatal na vida do velho. Repellida primeiramente a ideia como absurda e pouco digna, o pobre pae, com o coração esmigalhado pela dôr e pela vergonha, teve por fim que render-se e sacrificar o seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho. Obtida a licença, partiu levando como capital a benção paterna e os poucos pintos que rendeu mais uma hypotheca. * * * * * Os primeiros dias foram horriveis para o Conde. Sentia um vacuo enorme n'aquella casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a dôr foi abrandando pouco a pouco, e o Conde voltou aos habitos antigos. Tinha mais um sentimento no coração: a esperança. * * * * * Uma tarde chegou uma carta que dizia: «Meu caro pae, vou bem, vou muito bem. Pelo proximo paquete espero poder enviar-lhe cem mil réis, quantia que continuarei a mandar todos os mezes.» O Conde procurou _paquete_ no diccionario de Moraes, mas achou a palavra comida pela traça. O José chorava de alegria e n'aquella noite deitou duas taboas no lume, acceitou um copo de vinho ao João Pereira, e, quando acabou o terço, disse para o Conde, com quem o resára em voz alta: --Para que se realise o que sr. D. Carlos nos promette: Salve, Rainha. * * * * * E passou-se mez e meio e o Conde dizia: --O que será _paquete_? De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornaes, nem vêl-os queria. Detestava-os com um odio de velho, quasi instinctivo. Quando via algum jornal murmurava logo! --Maçonaria! E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera D. Sebastião, com uma confiança cheia de misterios e de pequenas impaciencias. O palacio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, taboa, por taboa, viga por viga, o quarto do criado passára pela chaminé e este dormia agora na camara do Conde. E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as taboas carcomidas: --Paciencia! Isto concerta-se depois, quando chegar o paquete. E o José apenas respondia: --Salve, Rainha. Estava-se no principio de janeiro. O Conde começou a separar os livros em duas classes: a dos livros uteis e a dos livros inuteis. Os livros inuteis transformaram-se em calor, e, quando o Conde via as paginas amarelladas torcerem-se sob a acção do lume, olhava para ellas tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia mentalmente, como que pedindo desculpa: --São os peores. Acabaram os livros inuteis e o Conde poz de lado os optimos e queimou os restantes. Duraram dois dias. E como o paquete não chegava, o Conde coçava a cabeça e olhava com um modo menos respeitoso para o missal romano. O José triplicava o numero das _salve-rainhas_. E o paquete não chegava, e os manuscriptos arderam, e o Conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio. * * * * * Passados dias chegou uma carta. Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa lettra, uma lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor de caligraphia. Trazia a marca do Brazil e cheirava a carvão de pedra. Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o Conde estendia instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas frias da chaminé, entrou gritando: --O paquete! o paquete! O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta. Era talvez a riqueza! Passou-lhe uma nuvem pelos olhos. Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto. E leu: «Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do seu filho...» O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta. José exclamava: --Perdidos! Perdidos! E dava com a cabeça nas paredes. O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de papel azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento. --Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa gente a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde lhe pede, por amor de Deus, um bocado de pão. E depois soluçando: --Manuel! Filho!... Meu querido filho! E como fazia muito frio, o Conde queimou o Suetonio. PERDIDO Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia áquella hora. Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da aldeia, que tinha de atravessar. Tudo era em silencio; apenas, muito ao longe, junto á fonte, uma rã solitaria coaxava tristemente. A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso, entre os choupos da beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta, que descia pela encosta em pujante vegetação sombria. Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido á escuta, olho á espreita, com um pé para deante, o outro para traz, posto de bico, prompto para a retirada. E, quando tudo outra vez cahia no primitivo silencio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobresaltado, de olhar desconfiado, como se fosse commetter um crime. Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a lua, n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram deixando cair grossos pingos d'agua sobre a rama dos pinheiros. O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, fantasticos, em meio do sussurro da folhagem. Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, iriando, como perolas transparentes, as gottas d'agua, que tremeluziam no extremo das agulhas. Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco, desde tantos annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella noite, vinha palpal-o, tomar-lhe o peso, tendo como unicas testemunhas de prazer tamanho o céo de temporal e os pinheiros a gemerem. * * * * * Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a choupana do guarda. Ouvira um chôro de criança e uma voz triste de mulher a cantar. O avarento approximou-se pé ante pé. --É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de lagrimas, interrompendo o canto. Se eu não comi!... Seccou-se-me o leite. E chorava. Aquella mulher pedira-lhe esmola na vespera. Pedira-lhe esmola!... Tinha fome, dizia. E elle?... Tinha frio. E elle? O filho definhava-se, desde que o marido d'ella adoecêra. Pedira-lhe esmola, como se lhe fôra possivel, a elle, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher! Mas ao som d'aquella voz estremeceu, porque ella, doida, offendida pela recusa, desgrenhada, d'olhos injectados, chamára-lhe ladrão, assassino, pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara. --Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, has de chorar, em cima da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama,... ladrão! E só a idéa de poder um dia ser assassinado, roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe erriçou todos os pelinhos do corpo. Afastou-se da chóça, para longe afugentar aquella idéa soturna; mas poucos passos andára, quando lhe pareceu ouvir o rachador, com uma voz fraca de tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome. Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido á escuta, sentindo bater accelerado o coração. Calára-se tudo na chóça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal fóra uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de soffrer. Tentariam aquelles roubal-o? E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fóra, deixando o vento levar-lhe o chapéo esboracado e remoinhar-lhe nas longas farripas grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se aos pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por ali fóra, até ao alto da serra, onde se deixou cahir extenuado ao pé d'um enorme pinheiro manso, sêcco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de espectro. Era ali o seu thesoiro. * * * * * Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos humidos, arquejando longamente. Depois, creando animo, mostrando força inacreditavel em corpo tão franzino, com os braços osseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro. Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, metteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um esforço supremo, com um ah! de victoria, puchou a si o cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do extasis. Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa. Ali estava o seu thesoiro!... Seu! E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimasinha no olho, abaixando-se para sopesal-o. Queriam roubal-o talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente d'uma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendel-o, como nunca loba defendeu um filho. Podia alguem ter desconfiado do logar onde o escondêra... Era muito noite ainda teria tempo de sobra para leval-o d'ali. Felizmente não lhe escasseavam forças. Querido thesoiro da sua alma, junto moeda a moeda! E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra alma lá dentro houvesse de perceber a d'elle; pedia-lhe, cheio de ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração! Os pinheiros humidos tornavam balsamica a atmosphera. Os raios obliquos da lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das outras e as sombras das copas bailavam, fantasticas, sobre os fetos molhados. E elle ali, tão sósinho com seu thesoiro! Havia tanto que lhe não punha os olhos! Sentando-se n'uma pedra, approximando o cofre, com um esforço enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos. O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faiscas d'oiro. E o avarento, em extasis, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz! * * * * * O vento cessára de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um grito de dôr, estridulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo ecco da montanha empinada, partiu da choça do rachador. Eram elles com certeza!... Eram os ladrões! Ergueu-se abraçado ao thesoiro, tranzido de medo, suando frio. E depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos esgalhos, cahindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, o perseguia. E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara. Quando o luar começava esmorecendo, ajoelhou, meio desfallecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde, com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, d'onde estava d'antes. Tapou tudo e, por instincto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou outra vez. Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabellos agarrados ás faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cahir no catre nojento. O dia rompia sereno. O vento abrandára e só por detraz da serra é que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paizagem, em que destacavam alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplendido, enchendo os campos de joias scintillando no escrinio de verdura. A aldeia acordára n'um banho de luz, cheia de bulicios, de cantos de gallos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma columnasinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo os almoços. * * * * * Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delirio, apenas intervallado por curtos somnos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquella noite agitada. Viu-se percorrendo o pinhal immenso, que gemia e dançava lugubremente, estorcendo-se no temporal como um condemnado na fogueira. Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de nodoas negras, os joelhos escalavrados. Mas onde enterrára o seu oiro? Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sitio, a forma d'algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, tremulo, suando frio. Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a bocca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas ás portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam no riacho, tostando ao sol os ventresinhos redondos e as cabecinhas loiras. E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali fóra! Ali estava o seu thesoiro, ali debaixo d'uns fetos, cujas hastes se abriam á sombra d'uns pinheiros, fetos e pinheiros todos eguaes n'aquella immensidade! Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do cerebro a loucura, que, pouco a pouco, o invadia! * * * * * Quasi noite foi dar á choça do rachador. Lembrou-se então que d'ali partira o grito que o amedrontára e, escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando: --Ladrões! Ladrões! No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, pallida, mirrada, as mãosinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha de seda roxa. E o pae e a mãe, ao lado do cadaver do filho, choravam mansamente. O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo ultimo vislumbre da razão. Recuou instinctivamente e foi cahir sobre um grande molho d'achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados, doido de todo e para sempre. E por deante d'elle passavam bandos alegres de pintasilgos fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que elle deixára nas silvas do pinhal, em quanto os gaios contentes, aquecendo-se ao ultimo raio de sol d'aquella tarde de primavera, soltavam, pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas ironicas. AD ASTRA Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de pelles para o lado, começava a apontar para o tecto as nuvens de fumo do negro cachimbo de gesso, escusado era falar-lhe; só rosnava em resposta um dito de mau humor ou, quando muito, um disparate. Estava pensando no Brazil, no seu Brazil, como lhe elle chamava. E era tratar de não fazer bulha, emquanto elle, sorrindo para os florões do tecto, recordava scenas da mocidade, temporaes vencidos pelo arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho n'um só bafejo da sorte. --O tio Bernardo está no Brazil, diziamos nós baixinho. E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir, sacudindo a cinza na unha rugada e negra: --Cá me embarquei eu outra vez! Demonio de tabaco! Este diabo vem de lá... Não sou capaz de fumal-o sem que logo me ponha a sonhar... Estava pensando agora... E começava uma historia por nós ouvida mil vezes. Eu e minha irmã sahiamos nos bicos dos pés, e elle concluia-a, dirigindo-se a minha mãe, que sentada na poltrona de tabúa, já sem feitio, pouco a pouco adormecia serenamente. É com lagrimas nos olhos que, depois de tantos annos, me recordo d'esses tempos. A nossa casa era a mais risonha de toda a villa. Ainda me alegra relembral-a, no alto dos rochedos, sobranceira ao mar. Muito pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar as gelosias verdes das janellas. Tinha em volta uma cercadura de ninhos, e todas as manhãs, no verão, acordava ouvindo cantar as andorinhas. No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas salpicavam os vidros e minha irmã pequenina, assustada como um pardal, escondia a cabecinha loira debaixo do chaile de minha mãe, que, sentada á lareira, lembrando-se do marido e do filho mais velho, que andavam sobre as aguas do mar, resava o credo em cruz. Não eramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miseria. Depois que o tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa, um certo luxo, uma certa despreoccupação pelo dia seguinte. É que o tio, além de vir dono d'um cahique, trazia comsigo uma caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras. Meu pae, que viera com elle como piloto, pouco tempo se demorou comnosco. O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia: --Olha, irmão; o que ali está... (e apontava para a tal caixinha) o que ali está chega-me para aqui poder acabar socegadamente os meus dias. Sabes que mais? Dou-te de presente o cahique. Não tenhas cuidado na mulher e nos filhos. O teu mais velho tem quinze annos; que vá comtigo. Vai, e sê tão feliz, como eu fui. Era sina de todos--o mar. Os mais desgraçados eram pescadores; os outros quasi todos partiam para o Brazil; alguns voltavam pilotos, alguns commandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns tambem... nunca voltavam. E era a lembrança d'estes que tornava tão triste a lareira nas longas noites de inverno, quando uivava o temporal. * * * * * Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume, porque no quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por cima do muro, para o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de figos brancos, tentadores. O mestre, ou porque desejasse lisongear o tio Bernardo ou porque na verdade eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros, quando ao domingo, depois da missa, nos encontrava a passear na Praça, nunca deixava de me dizer, tocando-me com dois dedos na cara: --Ah! que se o tio quizesse... havias de ir longe. Eu não sabia bem o que elle queria dizer com aquelle _ir longe_. Lembrava-me logo do Brazil. Mas porque motivo eu e não os outros? N'aquelle dia, quando já de vara na mão me dispunha a roubar quatro figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio. Senti um calafrio pela espinha. --Olá, rapaz! que andas por ahi a mariolar, em vez de ires direito para a escola? Voltei-me todo assustado e vi-o á janella do prior, que, felizmente para mim, desatou ás gargalhadas. --Espera ahi que te quero falar. Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de elle nunca me ter batido, com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca. O tio Bernardo poz-se a rir. --Não tens vergonha...! Começou andando ao meu lado muito depressa. Ás vezes parava limpando o suor. --Sabes o que vou fazer? perguntou-me. Vou ver se o teu mestre diz verdade. Quero um dia assistir á escola. Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a roubar os figos, me fosse ver a atrapalhar-me á pedra! Fiz a promessa d'uma véla de cera á Senhora dos Milagres e, com mais alguma confiança, entrei na escola e fui pedir a bençam do mestre. Chegámos um nadinha tarde. Estava o Patricio á pedra. O tio Bernardo fez um signal para que ninguem se incommodasse e sentou-se ao pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu logar. O Patricio, coitado, que estenderete! Parece-me ainda estar a vel-o com as calças de quadradinhos, remendadas, muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe dava um aspectosinho grave, a camisa de panno cru aberta sobre o peito, e dois bocados de ourelo a servirem de suspensorios. Com as mãos nas algibeiras, os olhos muito injectados, e as azas do nariz a tremerem, ouvia contendo o mau genio, a rabecada do mestre. Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem quatro ou cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa. --O senhor... disse o mestre apontando para mim. Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta, que tanto atrapalhava o Patricio. --Muito bem. Tire a prova dos nove. É o que eu digo, murmurou, quando acabei. Has de ir muito longe. O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse mais algumas perguntas. A todas respondi com muito animo e desembaraço. --D. Affonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador, D. Affonso II, o Gordo... A historia toda. --Muito bem. Pode sentar-se. O tio levantou-se, dizendo-me: --Estou contente comtigo, rapaz. E sahiu. Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter falado a meu respeito. Apenas eu abria a bocca, olhavam um para o outro e tossiam com certo ar misterioso. Minha mãe teve alternativas de alegria e de tristeza. Quando a via rir, pensava: --O tio falou-lhe na lição. E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ella soubesse...! Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me: --Ouve cá. Tu tens uma cara seria e o teu mestre, que deve ser n'isso entendido, diz que aqui dentro tens mais alguma coisa do que os outros. E batia-me com os nós dos dedos na cabeça. Eu estava radiante de alegria. --Além d'isso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para um homem do mar. A conversação tomava de repente para mim um caminho inesperado. Se os pulsos eram fracos, e isso era o diabo para um homem do mar, que me importava o que o mestre dizia que eu tinha dentro da cabeça? Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria. --Ainda agora, continuou meu tio, estive a conversar com o padre prior a teu respeito. Aquillo é que é vida, meu filho: padre! --Não quero! respondi, dando um murro em cima da mesa. Não quero ser padre. --Ninguem te obriga, rapaz. Ha outras vidas tão boas ou melhores até. Medico, por exemplo. --Não quero! E, desviando os olhos para o lado da janella, vi lá onde o céo vai dar um beijo no mar, uma velasinha alvejando, que me pareceu do meu partido e a gritar-me lá de longe: --Fazes muito bem. Não queiras ser medico, não queiras ser padre. Olha para mim. Cá dentro vai a ventura! --Pois não queiras! gritou meu tio. E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças. Eu, espantado do meu atrevimento, tinha baixado tristemente os olhos e, muito amuado, coçava a cabeça. --Lá no collegio, tens tempo de sobra, para te resolveres, disse meu tio porfim, parando deante de mim. Ámanhã vais comigo para Lisboa. Lisboa! Soou-me o nome aos ouvidos como palavra magica. Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só nome me despertava na imaginativa sonhos encantadores, prodigios de riqueza, mansões de fadas! Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me puz a rir de rijo! Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava. --Vamos, disse o tio, batendo-me com a mão no hombro. Vai vestir o teu fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente! Lisboa! Lisboa! Eu bem via as lagrimas da minha mãe, mas este grito da minh'alma calava-me o coração. Fui despedir-me do mestre-escola que, adeante de todos, me deu um valente abraço, dizendo-me: --Continua assim, meu rapaz. _Sic itur ad astra!_ Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a palla do bonnet e limpava-a depois á manga da jaleca. Ficou-me o latinorio no ouvido. Annos depois encontrei-o... Boa vontade não te faltava, querido mestre! Á noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar. --Quando ás vezes me esqueço para ahi horas inteiras a fumar cachimbo, vocês põem-se a rir e dizem: «Lá está o tio Bernardo no Brazil!...» Pois bom é que saibas, antes que o aprendas á tua custa: nem tudo são rosas na vida. E no mar os espinhos são muitos. A gente volta, chega a casa, esquece tudo. Quantas vezes o diabo não levou a cardada! O que passou, passou; olha a gente para traz e só vê aquillo de que tem saudades: por isso nunca falo de fomes, de privações, de perigos... Não te dê desgosto não ser homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus. Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar que, desde que eu voltava costas ao Oceano e marchava para Lisboa, era o ente mais feliz do mundo. Bem lhe dispensava o sermão. Já me via homem, voltando para a terra, de relogio e breloques, apertando na praia, depois do banho, as mãosinhas das senhoras, fumando o meu charuto, tratando o administrador por _tu_ e o prior por _você_. --Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bençam á tua mãe. Então, não sei porquê, senti de repente um nó na garganta e eu, que tão pouco me lembrára d'ella, foi a soluçar que lhe cahi nos braços. Ella apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer doer, e dando-me um beijo muito longo, disse-me um adeus tão sumido, tão sumido que quasi o não ouvi. No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos na almofada da diligencia, partiamos caminho de Lisboa. * * * * * Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever cartas e procurar empenhos, consegui finalmente ser admittido como amanuense nos proprios nacionaes, telegraphei a minha mãe, ou que na resposta me participou a chegada de meu pae. Não se calcula a alegria com que parti. Havia trez annos que não via o querido velho, que só de longe em longe vinha a Portugal matar saudades. Estavamos então no principio do inverno e um denso nevoeiro espalhava-se sobre o mar. Ainda longe da villa, já ouvia o sino da Senhora dos Milagres tocando afflictivamente para indicar o porto aos que andavam fóra. --O José Sacrista, coitado, disse-me o cocheiro, tem o filho lá no mar e desde hontem de manhã que está agarrado á corda do sino. Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquelle sino tão afflicto, ou talvez dó do sacrista, que fez com que me apeasse da diligencia, levando oppresso o coração. No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio abraçar todo tremulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala. --Parabens, muitos parabens. Eu bem te dizia. Não pude deixar de sorrir-me. --Que pena, continuou, vires em occasião tão triste! --O que? --Não sabes?... Valha me Deus! O tio Bernardo... --Morreu? perguntei ancioso. --Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão mal... Não ouvi mais e desatei a correr. Estavam todos reunidos no quarto do tio. Quando entrei, abriu os olhos e disse: --És tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de morrer sem tornar a vêr-te. Já sei que estás amanuense. Sou um homem rude, não sei o que isso é; mas deve ser... muito! Foste longe. Esteve um momento calado, respirando a custo, e depois continuou: --O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu pae já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o cahique. Olhei para meu irmão. Estava herculeo. Uma barba negra, muito espessa, descia-lhe até meio do peito. Um pesado grilhão de oiro cahia-lhe do pescoço até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um instante em mim os olhos já embaciados, e sorrindo: --Olhem que mãosinhas! Não vivias no mar dois dias. Tive rasão. Emfim, graças a Deus, fiz todos felizes. Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando. Quando tornou a abril-os, procurou-me com a vista: --Tenho pensado muito em ti... Como é o latinorio do mestre? Não sabia o que elle queria dizer... Depois lembrou-me de repente. --_Sic itur ad astra._ --_Ad astra, ad astra!_ repetiu machinalmente. E, com os olhos vidrados fitando os florões do tecto, ficou-se a sorrir, como se Deus o houvera levado para um Brazil ideal. O VENTURA Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras de vapor. Faziam apenas concorrencia aos catraeiros de Belem os omnibus immensos da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando por aquella estrada fóra até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por cabeça. A vida de barqueiro não era então das peores; e o José da Anastacia com o seu bom genio constante e o sorriso obsequiador, em que mostrava os dentes amarellados pelo tabaco, quasi da côr do rosto requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistára as sympathias de muitos, que preferiam o bote d'elle e a viva conversa do algarvio, á velocidade pacata dos churriões da Companhia. Era vel-o quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço a familia do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote, arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portugueza, dadiva das meninas, e que fluctuava lá no alto, no angulo da véla, com mais donaire e, com o ser pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha d'uma náu da India. O Conselheiro, muito amigo d'elle, nunca lhe chamava senão o Ventura. Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com a mão junto aos sobrolhos e os olhos piscos por causa do sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a fluctuar lá em cima, e a prôa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul, em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, junto ao Pontal de Cacilhas. E os véos azues das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo vento. Á volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para entreter, contava historias e fazia reflexões, que as meninas approvavam, meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os olhos nas margens do Tejo que deslisavam lentamente. E elle, fincados os pés no banco deanteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os musculos possantes dos braços cabelludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria n'uma felicidade santa e levantava compassadamente os remos, d'onde cahiam enfiadas de perolas, que os ultimos raios do sol cravejavam de pontos luminosos. A Anastacia, uma velhinha, que morava n'uma agua furtada, quasi ao cimo da Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa, atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emmaranhada, beijava com ancia, mil vezes, sobre os cabellos seccos e duros, o amparo querido da sua viuvez. Elle, um homemzarrão com vinte e tantos annos, adormecia, logo depois da ceia, com a cabeça reclinada no collo da mãe, cançado, mas feliz, contente n'aquelle ninho. --José, vamos, acorda, dizia ella, dobrando o serão, quando na torre da Boa Hora batiam vagarosamente as dez. O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de somno. --Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião! Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto, murmurando: --Sua bençam, minha mãe. E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim. * * * * * Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali fóra, até Monsanto. Ia passeando devagarinho. O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquella volta, e o José achava-lhe geitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas cahindo d'alto, lá por detraz, ao pé da Costa. Diabo do inverno! Começava cedo. O sol descia. O José parou um bocado a vel-o mergulhar na espuma. Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desappareceu, fechava o horizonte uma lista negra, franjada de oiro, que ameaçava engrossar. Pois paciencia! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. Todos os annos havia inverno e na casa d'elle nunca houvera fome, graças a Deus. E o José levou a mão ao barrete. Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a elle nada lhe faltava e a muitos faltava tudo. Lembraram-lhe então certas historias. Aquella mulher a quem uma vez alugára o bote, porque a encontrára a chorar no Largo. Tinha deixado os filhos sósinhos em Caparica e estava ali com um vintem na algibeira; e elle alugára-lhe o bote pelo vintém, que acceitára, porque não queria envergonhal-a. E outra vez que elle se escondeu para o Conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Matheus, que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a tossir, a tossir, e elle sem dinheiro para lhe comprar o caustico? Havia tanta pobreza! Elle nada lhe faltava e até na algibeira trazia quasi sempre uns cobres, para o que desse e viesse. E como levava sede, entrou n'uma taberna e pediu dois decilitros. O taberneiro tinha sahido. Foi a filha quem veiu servir. O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe trouxe o copo trasbordando, deixando cahir no pires de barro grosso, branco, riscado de azul, um pouco de vinho em que ella molhava a unha do pollegar. Para o gosto d'elle nunca vira mulher assim! Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada: --Muito obrigado. E ficou-se a olhar para ella, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe occorrendo nada, sentindo como que um nó na garganta e um véo no entendimento, que o apouquentavam. Era uma rapariga alta, magra, de cabellos castanhos muito finos, muito compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco branquissimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar d'uma pequena quebra; a bocca um quasi nada grande, com o beiço interior saliente, e uns olhos azues escuros, que entonteceram o José, quando n'elles demorou os seus. Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada tambem pela ingenua admiração que percebia causar áquelle homem, lavava os copos n'um alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e collocava-os depois na prateleira de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como aureolas, se alastravam grandes nodoas roxas rebeldes á limpeza. A noite vinha-se approximando. A taberneira raspou um fosforo na prateleira e, desviando a cara dos fumos do enxofre, accendeu o candieiro de petroleo. --Muito boa noite, disse. --Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco. E nunca musica para elle valêra aquella voz. O vento fóra soprava rijo e o ramo de loiro á porta raspava na parede. O José levantou-se e abriu o saquinho d'algodão. Com voz sumida pediu por favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever a mais palavra. Por toda a estrada veiu pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada na memoria, e até nas mais pequenas particularidades, uns signaesinhos espalhados pelo nariz e um outro sobre a palpebra um pouco mais accentuado. E repetia mentalmente, muito enlevado, as unicas palavras que lhe ouvira:--«Muito boa noite. Muito boa noite.» * * * * * A mãe extranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como costumava, pregou os olhos no tecto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto, a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz castellos no ar, que os vê cahir de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem sequer reparou nos olhares prescrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe lançava por cima dos oculos. Mas de repente a pobre Anastacia deu-lhe o coração um baque. E ella que nunca se lembrára d'aquillo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia de acontecer? E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passára, murmurou com os olhos embaciados: --Queira Deus que seja para bem. O José encarou-a, despertado por aquella voz. Ergueu-se e approximou-se da janella, que abriu. O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas cordas d'agua entraram no quarto. --O inverno! disse elle, fechando a janella. A velha encolheu os hombros. E depois, com certo ar malicioso, já conformada: --Ainda agora para ti começa a primavera! * * * * * Pouco tempo durou. Uma noite, o José sentou-se tristemente á prôa do bote e remou devagar para o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a perna, fincando a barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Poz-se a olhar, sem as ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nodoas escuras dos navios brilhavam como lentejoulas no panno negro dos caixões. Estava triste o José naquella noite. E quando reparou, á pôpa do barco, na alcunha d'elle--Ventura--pintada em grossas letras brancas sobre uma variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com ironia:--Ventura! O bote arrastado pela vasante passou para além da Torre, e o José perdeu de vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio baloiçando-se sobre a facha projectada, tremeluzente. Que tristeza aquella! O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia frio, e o Ventura encharcado, tremia. De repente, o candeio desappareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa, arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou cahir os braços, em grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre o peito. O bote virou devagarinho e continuou em seu caminho fatal. O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. Julião parecia examinal-o com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita. O bote passou entre os dois faroes. As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica d'ellas era triste como o coração do Ventura. E fôra o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrára o primeiro espinho! Ao principio corrêra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que todos o Conselheiro. --Nada! dizia elle ao Ventura, batendo-lhe com a mão no hombro. Estes progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um bello dia... --Zaz!... Pum!... concluia José, rindo muito e imitando com os braços um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar. E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque, muito coxas com as botas curtas, fazendo todos signaes desesperados com os chapéus de chuva para o vapor que apitava, prompto a largar. Bem lhe tinha dito o pae da Maria Eduarda: --Muda de vida, José, ou prégo-te a peça. E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a peça ao Ventura. Foi n'um dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois tostões. E, em vez de os entregar á mãe, foi á loja da esquina comprar um collar de contas para levar á namorada. --Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater. --Sahiu, respondeu lá de dentro a voz do pae. Queres-lhe alguma coisa? --Nada, respondeu. E ficou encostado á porta, esperando a noiva. Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver. E o Ventura á porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome. --Olá, _seu_ Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa d'oleado deitado para traz. Já vieram as senhoras? --Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse á mãe que haviam de voltar cedo por você cá vir... _Seu_ maroto!... --Ó _seu_ Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra... --Mau! mau! E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao ouvido: --Olhe que a ceia está prompta e tenho ali uma pinga...! O Ventura á porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, escondia o pé descalço atráz da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã esboracado. E logo voltando, n'um desespero, atirou ao chão a caixa do collar. E as contas de vidro foram adiante d'elle saltando por longo tempo, fazendo uma bulha alegre de gargalhadinhas trocistas. E a mãe áquella hora tinha fome...! E fôra talvez a fome que a matára! Lá estava enterrada na valla dos pobres, lá muito longe, por detraz d'aquelles montes, que a lua a nascer, espargindo uma baça claridade, azulava docemente. Estavam fóra da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia. * * * * * No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de S. Julião, um bote abandonado, que tinha á poppa escripto n'uma variegada rosa dos ventos o nome do Ventura. E quando soube da triste nova, emquanto aos olhos das filhas subiam saudosas e sentidas lagrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que durára a primavera do José, citou as rosas de Malherbe. O PRIMEIRO SORRISO Mal se tinham accendido as luzes no Colyseu, quando elle entrou devagarinho, triste, um pouco asmatico, meneando a cabeça pallida. Parece que mais lhe pesava a corcunda n'aquella noite. Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos logares mais baratos, foi encostar o queixo á teia de pinho, pintada de branco, junto do caminho atapetado, que a cantora devia seguir do camarim para o palco. Era uma artista celebre a que se estreava. Com oito dias de antecedencia tinha-se espalhado com profusão pela cidade, collado aos vidros das portas dos armazens de musica, pendurado em quadros ás esquinas das ruas, o retrato lithographado de mademoiselle Eva d'Avenay. Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua do Oiro, erguendo a cabeça, deu, de subito, com um d'aquelles retratos na loja d'um livreiro. Parecido ou não, representava uma mulher lindissima. Ficou extatico um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como que dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta. Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquillo se vendia. --Um tostão. Elle que nunca olhára para mulher senão cá de muito baixo, coitado, assentando no meio da espinha as abas do chapéu, que (facto pouco vulgar) por detraz é que amolleciam, podia finalmente, por um tostão (barato!) contemplar uma mulher bonita á vontade, sentado commodamente, sem ser visto e sem ter de córar. Quando sahiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que embrulhava a lithographia, caminhou mais depressa, quasi alegre, menos asmatico. Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou n'ella os cotovellos, e, com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte da noite em contemplação da extranha formosura. Parecia-lhe que afinal aquella mulher tinha que reflectir para elle uma parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que sentia. Desejos haveria tido, mas amar... Quem? Se, quando passava, todos se riam e ninguem, ninguem, jámais sorrira para elle! Quando recordava tempos longinquos, via, como atravez d'um nevoeiro, uma mulher a quem elle estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava sobre o pequenino berço--tão pequenino!--e que o envolvia n'uma atmosphera de amor, beijando-o muito. Mas essa mulher tambem não sorria... chorava. Chorava naturalmente de vel-o tão fraquinho, tão feio, tão infesado. Se o visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabellos alvejando-lhe nas fontes, e triste sempre, sempre tão triste! Por isso contemplava aquelle retrato, como se fôra possivel aquella mulher loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para elle, aquelle sorriso que, por todas as esquinas, por toda a parte, ella enviava... para quem?--para coisa nenhuma; que o retrato era a tres quartos e ninguem sabia para onde olhava. * * * * * Os porteiros, cada um á sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam os bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O theatro continuava ás escuras. Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do collete, assobiando por entre dentes. Sentou-se, deitou as pernas para cima da cadeira que lhe ficava defronte, poz o lenço entre o pescoço e o collarinho, e, tirando um palito da algibeira, poz-se a espalitar os dentes, com um ar massado. Duas ou tres filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente com o chapeu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco ás orelhas. Conheciam-se e começaram conversando em voz alta: --Olá, Conselheiro! Então tambem deitou até cá? O homem gordo encolheu os hombros. --Não ha mais nada que fazer! E depois de espalitar um bocado: --Que isto cheira-me a fiasco. --Ora! disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. A tal mulher... --A gente cai em cada uma...! terminou o Conselheiro. E, encostando a cabeça para traz, deu largas a um bocejo formidavel. Um arrumador, que passava n'aquelle instante, sorriu-se aduladoramente, curvando-se muito. --Senhor Conselheiro... --Adeus, _seu_ José. E fechou os olhos, como se estivesse dormindo. Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, como perguntaria áquelle homem, frente a frente, com que direito bocejava, quando elle estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito! Os musicos com os instrumentos dentro de saquinhos de chita, começaram a entrar, limpando o suor, resmungando arias, espreguiçando-se. Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O theatro encheu-se rapidamente. Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques. Os logares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da predilecção de muitos; pouco a pouco foram-o empurrando, e elle apertado, afflicto com a asma, que logo o atacou violentamente, ouvia por detraz umas risadinhas zombeteiras. Sentiu n'uma orelha bater-lhe uma bolinha de papel. Um velho mal encarado, ao lado d'elle, estava de figa feita. E resignado, agarrando-se aos balaustres da teia, esperava que fosse aquella noite a primeira feliz da sua vida. Abriram as torneiras do gaz e a luz jorrou de repente. Houve um sussurro maior. Muitos, que ainda se não tinham visto, cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os oculos para os camarotes e começaram tirando os chapéus. O theatro transbordava. Os musicos afinavam os instrumentos. Ouviam-se por entre as variações alegres da flauta as notas harmonicas das rabecas. O homem dos timbales batia notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as escaravelhas. Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os collegas, emquanto descalçava a luva. Bateu na estante e ergueu alto o braço. Houve uns _schius!_ assobiados por alguns amadores, que a toda a salla impuzeram silencio. O regente olhou para todos os musicos, demorou-se um instante e depois, descrevendo com a batuta um quarto de circumferencia, fez signal ás rabecas, que logo começaram tocando muito piano, em unisono. Era com certeza mademoiselle Eva d'Avenay quem ali attrahia a maior parte dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o tom e, como as rabecas sósinhas continuavam tocando pianissimo, havia o que quer que fosse fantastico n'aquelle maestro de grande cabelleira cahindo-lhe até á golla da sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a batuta, e deixando depois cahir o braço a tremer, a tremer, commandando uns arcos que se mexiam como puchados por um só homem, mordendo cordas que não tinham som. Decididamente o corcunda suffocava. De repente, a um signal energico do regente, os metaes vibraram enchendo a sala de notas alegres, vivas, que n'um instante, como por encanto, cortaram as palestras. Foi um relampago de alegria. O regente sorriu-se delicadamente e as rabecas continuaram sósinhas no meio da distracção geral. Um gaiato gritou lá de cima: --Muito bem! Tinham acabado felizmente. A respiração do corcunda era um apitosinho. * * * * * Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco mademoiselle d'Avenay. Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu-se. Ouviram-se vozes: --Abaixo! Ella, já no palco, sorria impassivel, cumprimentando o publico, olhando em volta, muito serena. Alguns enthusiastas davam palmas. O Conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz:--de truz! O regente muito amavel curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma pergunta. Respondeu que sim, muito risonha, muito amavel. As rabecas preludiaram. Ella concertava o decote e alisava o cabello na testa. Era uma mulher em todo o esplendor da belleza dos trinta annos, de elegancia distincta e intelligente, alta, com o busto quebrado um pouco na cintura, o peito forte, braços admiraveis, hombros muito redondos, e nas costas, bem ao meio, uns dois ou trez signaes, que pareciam ter-lhe sido dados, de caso pensado, pela natureza, para que ninguem julgasse que aquelle busto era de marmore. Os olhos azues tinham um olhar profundo e os cabellos loiros e finos emmolduravam uma testa muito lisa, como de virgem de quinze annos. Quando cantava, a bocca sympathica, fresca, sorria sempre, alegrando-se aos cantos com duas pregas infantis. Do logar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança doirada e todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos espectadores agglomerados nos degraus em amphitheatro do outro lado da sala. Quando ella acabou de cantar, toda a platéa applaudia, delirante. O corcunda bem queria dizer--bravo! mas sumira-se-lhe a voz. Mademoiselle d'Avenay cantou tres vezes n'aquella noite e o delirio crescendo sempre! Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda do vestido. Já os musicos se tinham retirado, já o illuminador começava fechando as torneiras do gaz e ainda novas ovações eccoavam na sala. Ella tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amavel, sorrindo como no retrato, para o ar, para coisa nenhuma. E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava o corcunda. * * * * * Achou-se afinal sósinho. Umas familias, que se tinham encontrado á sahida, conversavam, emquanto as senhoras vestiam os chailes e os homens accendiam os cigarros. Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, como elle não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e do seu pedestal lhe fizesse a mercê d'um olhar. Mas nem ella o vira, nem elle pudera ajudar á ovação. Bem tinha deitado os bracinhos por entre os balaustres para applaudir; se não fosse a asma, teria gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho...! Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe. Sentou-se n'um dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos. Pouco a pouco, ia perdendo a memoria do que se passára, conservando apenas a consciencia de que era um desgraçado. Accordaram-o uns passos de mulher. Ergueu a cabeça. Mademoiselle d'Avenay, toda embrulhada em rendas brancas, sahia do camarim muito risonha, conversando com uma velha, que a acompanhava. Levantou-se. Ella tinha de passar por ali e elle tremia. Quasi sem forças, desvairado, mal poude pronunciar: --Bravo! Bravo! Ella parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão, julgando-o provavelmente uma creança, tocou-lhe com dois dedos na cara. Mas, picando-se nas barbas, retirou a mão e disse: --_Pardon, monsieur._ E quando passou... sorriu-se para elle. O MEU REWOLVER Em dezembro. O sol morria depois de curta vida. A tarde era fria e o vento cortava. Triste, cansado, depois de um dia inutil, voltava para casa silenciosamente, mastigando um charuto insupportavel. Pesava-me como cruz de ferro a ociosidade que não pudéra combater. A melancolia apoderára-se de mim. Envolvia-me a alma como que n'um lençol humido e frio. Bandos de operarios voltavam do trabalho alegres, socegados, interrompendo com cantigas de fado as conversações politicas. Irritou-me a alegria d'elles. Eu caminhava de cabeça baixa; mas só mal definidos pensamentos se atropellavam no meu espirito, sem razão, como succede nos sonhos inquietos. Vagas saudades do passado, desejos mal definidos de outro tempo... Tudo triste, triste. * * * * * Subi a escada ingreme, que levava ao meu quarto andar, e achei-me em casa, sem quasi me lembrar do caminho que seguira. Os ultimos raios do sol entrando pela janella entreaberta morriam, faltos de forças, allumiando fracamente uns velhos retratos de familia, immoveis, havia muito, nas molduras carunchosas. Estava só. Ainda bem. Puxei de uma cadeira e sentei-me á janella, resolvido a esperar com paciencia a noite, que ao mesmo tempo desejava e temia. A atmosphera era humida e pesada. Na rua havia profundo silencio. O occidente, carregado de nuvens negras, orladas por uma franja dourada, parecia o panno enorme d'um caixão de gigante. As nuvens cresciam impellidas pelo vento da barra, ameaçando breve toldar o céu. Luziu a primeira estrella. Contemplei-a com amor, lembrando-me de que ainda ninguem áquella hora tivesse dado por ella. Estaria talvez no ceu brilhando tão só para mim. E senti não sei que satisfação intima com aquella idéa: para mim só! Puz-me a contemplal-a com amor, a falar-lhe como um poeta; e ella consolou-me, e, durante toda aquella tarde, foi este o unico momento em que tive amor á vida. Um empregado do gaz passou pela rua accendendo os candieiros e assobiando uma polca. Ouvi uma voz por cima da minha cabeça. --Menina Maria! Menina Maria! Era o meu vizinho da trapeira, um empregado de uma casa de penhores, feio, bexigoso e rachitico. --Está o gaz acceso. São horas de começarmos a conversar. N'uma janella do outro lado da rua appareceu a cabeça pallida de uma rapariga, que de dia namorava o boticario e de noite conversava com o bexigoso. --Muito boas noites. A menina Maria começou a fazer-lhe signaes querendo dizer, creio eu, que addiasse para mais tarde as declarações de amor, não fosse eu ouvil-as. --O que? perguntava o bexigoso. Não percebo. É pena estar o tempo de chuva. --É pena, é! Pouco poderemos conversar. D'aqui a pouco... Olhe, não vê? Estão as nuvens quasi tapando aquella estrella. E apontou para a estrella, que fôra até ali o meu enlevo. Dei um murro no parapeito da janella e fechei-a desesperado. * * * * * A nuvem negra, para provar que o bexigoso não era tolo de todo, deixou cahir como prologo de maior chuveiro, uns poucos de grossos pingos de agua, que vieram bater tristemente nos vidros da janella. Accendi o velho candieiro de azeite e recostei-me n'uma poltrona de oleado, onde dei largas aos merencorios pensamentos. Decididamente odiava a vida. E que me prendia a ella? Fôra uma cadeia de oiro a d'outros tempos, mas viera a desgraça quebrar-lhe, um a um, os elos todos. --A morte! E machinalmente puxei do rewolver. Era uma joasinha americana, bonita, de systema engenhoso, com fechos de prata, que me saira n'um bazar de caridade. --Eis o remedio para quantos males se soffrem no mundo, pensei. Uma pouca de coragem, um pequenissimo movimento... e nada mais é preciso. Comecei a brincar com o gatilho. --De que serve uma vida a que póde dar fim coisa tão pouca? E, como para convencer-me de que não havia nada mais facil, approximei da bocca o cano do rewolver. E vi que tinha medo e que me repugnava a morte. Lembrei-me do frio da terra e do contacto da carne com os corpos frios e molles dos bichos nos cemiterios. E requintei na fantasia as sensações da longa fileira dos rigidos cadaveres, que via dormindo na valla commum o somno doloroso da morte. Passou-me um calafrio pelo corpo, ergui-me, levantei a golla do casaco e comecei a passear pelo quarto. Os velhos retratos mettidos na sombra da bandeirola pareceram-me espectros. Um sobre todos, lembra-me, causou-me horror extranho, n'aquella noite. Era um conego velho, gordo, sem barba, com uma corôa de cabellos grisalhos em torno d'uma calva lisa e amarella. Tinha uns olhos azues, pequeninos, que se fitavam na gente para onde quer que se fugisse. Quando eu era pequeno, tinha um dia virado o conego de cabeça para baixo, para ver se assim parava a perseguição do seu olhar. Meu avô, que n'aquelle momento entrara no quarto, ralhou muito commigo, que fôra uma falta de respeito, que o conego era meu tio, que fôra homem de muito saber e que até compuzéra uma grammatica latina com a prosodia em verso. E eu, que detestava a prosodia e o latim, comecei desde logo a detestar o tio. N'aquella noite pareceu-me que os olhos azues e pequeninos scintillavam, phosphorescentes. Recuei com um calafrio, procurando fugir ao pesadêlo. E os seus olhos pequeninos, azues, phosphorescentes continuaram a seguir-me com pertinacia. Passei a mão pela testa e trouxe-a humida de suor frio. Dei volta á bandeirola do candeeiro e, cheio de falsa coragem, approximei-me do retrato. Estava louco! --Sou um cobarde! Tenho a cobardia d'uma criança, pensei. Fui ao armario de páo preto, envidraçado, onde tinha uma garrafa com um resto d'absintho. Um caruncho, com aquelle ruido monotono e compassado, que tanto se ouve nas casas velhas, incumbira-se da agradavel tarefa de esfarelar uma prateleira. E eu sentia dentro em mim uma tempestade! E se me tivesse suicidado, se junto d'aquelle armario se houvesse passado um drama horrivel, elle teria placidamente, com a maior indifferença, continuado a morder voluptuosamente a madeira resequida, em sua obra de destruição. Abri a garrafa. Bebi sofregamente. Pela segunda vez approximei da bocca, voltando as costas ao conego, o cano do rewolver. Senti abrir-se a janella do bexigoso e ouvi-lhe a voz esganiçada: --Menina Maria! Parou a chuva. Salvou-me a vida. Escutando-o, quiz despedir-me da voz humana. No curto momento, em que o meu antipathico visinho levou a dizer aquella phrase, entrou-me n'alma o receio. --Decididamente sou um cobarde, um grande cobarde! Preciso beber. E sahi, mettendo o rewolver na algibeira. * * * * * Pela segunda vez na vida o bexigoso falára sem dizer tolice. Effectivamente cessára a chuva, e apenas umas nuvens brancas, com grandes manchas d'uma côr mais carregada, formavam castellos fantasticos, entre os quaes corria a lua a toda a brida. Ao dobrar d'uma esquina encontrei um amigo. --Aonde vais? disse-me. Até S. Carlos? Pareceu-me offensa a pergunta e estive para responder-lhe: --Não, vou matar-me. Mas não quiz. Dizer-lh'o, para que? Se não podia perceber-me? --Vou sem destino, disse. --Já jantaste? --Ainda não. --Jantemos juntos n'esse caso. E deu-me o braço e começámos a descer a rua. E eu ia pensando com uma certa alegria no jantar e comecei a ver a morte sob outro aspecto: o suicidio depois de bem comido, numa salla bonita, quente, alumiada fortemente por dois lustres de gaz. Que differença! Que admirava que me tivesse faltado a coragem n'aquelle quarto frio e humido quando eu estava possuido da tristeza da fome? Frio e fome por toda a eternidade!... Entrei no hotel cantarolando um bocado da minha opera favorita. Defronte de nós uns americanos bebiam champagne, _veuve Cliquot_. --Grande vinho, o champagne! não achas? disse o meu amigo. --Magnifico! --Havemos de vir bebel-o aqui um dia d'estes. É pena não poder ser hoje. --Porquê? Não respondeu e córou até ás pontas das orelhas. E eu achei que para dar coragem nada havia como o champagne. E puz-me a passar revista a todas as suas boas qualidades, e por fim achei que eram tantas e tantas, que, esquecido da morte... fui pôr o rewolver no prego. O MIMOSO --Está frio, dizia elle subindo o Chiado. Era um homem de quarenta annos, magro, quasi cadaverico, de melenas tão compridas e tão esquecidas de pente que se lhe emmaranhavam nas barbas, de olhos negros, encovados, de olhar obliquo e desconfiado, a luzirem com fome por cima das olheiras papudas. Era no inverno e elle com a mão ossuda, engrifada apertava contra o peito a sobrecasaca rota, sem botões. Não trazia collete e a camisa era um frangalho. Como se precisa ter gravata para entrar nos passeios, onde não desgostava de ir á tarde apanhar um bocado de sol, trazia um pedacinho de panno azul pregado ao collarinho sem gomma com um alfinete de ferro. As botas rotas, sem tacões, tinham, a tapar-lhes os buracos, camadas sobrepostas de lama secca. Parou á porta do Baltresqui. Um janota sentado a uma das mesinhas do café, deante de uma garrafa de Père Kermann, aspirava o fumo aromatico de um charuto pequenino. Passados momentos, tirou o relogio da algibeira, viu as horas, engoliu de um trago as ultimas gottas do calix e, chamando o criado pelo nome, atirou-lhe uma nota de dez mil réis. Quando o criado voltou com o trôco, levantou-se deixando o cobre em cima da mesa. --Muito obrigado, sr. Visconde, disse o criado, dando-lhe piparotes na manga do sobretudo suja pela cinza do charuto, que o Visconde quebrára na borda da mesa. --É um visconde, observou distrahidamente o homem das botas rotas. E como o Visconde voltasse para cima, seguiu-o á espera que deitasse fóra a ponta do charuto. Ia apertando a sobrecasaca contra o peito e invejando o casaco do Visconde, comprido, felpudo, de grande golla, que se podia levantar e abrigava as orelhas do frio. O Visconde subia o Chiado devagarinho, com as mãos nas vastas algibeiras, tirando do charuto abundantes fumaças, com aquelle sorriso de satisfação, que dá a certos parvos de bom estomago a digestão de um bom jantar. O pobre diabo tinha fome. Almoçára na véspera; depois não tinha comido. Mas o que mais o apouquentava era o apetite de fumar. O fumo adormece a fome e expulsa a melancolia. Póde-se dormir, quando se tem um cigarro na algibeira e o fumo de um outro enchendo o quarto. O tabaco é o veneno rei dos venenos, um elixir que mata lentamente, que embriaga, que socega os nervos, que enfraquece a memoria e dá ás pernas uma preguiça deliciosa, que faz achar boa a cama pela manhã, quando o ar está cheio de neblina e na rua afogada em lama se ouvem os pregões e o sussurro dos que teem que fazer, dos que trabalham. --Por isso Deus que afinal é bom, ia o homem pensando, encheu as ruas de pontas de charuto para os homens e de tallos de couve para os cães, que não fumam, que não teem que esquecer, que são tolos. Mas a noite estava chuvosa e as pontas de charuto, não se viam, enterradas na lama pelas rodas das carruagens. Por isso seguia o ricaço, ancioso pelo momento em que o charuto havia de cahir espalhando em torno uma chuva de faisquinhas. O Visconde parava de vez em quando, apertando a mão aos amigos que desciam. --Então que se faz? perguntavam-lhe. E elle só encolhia os hombros como resposta áquella pergunta ociosa e tola. O homem notou: --Pois elle não terá nada, mesmo nada, que fazer? Comparou-se com o Visconde e sentiu uma certa vaidade. Porque elle trabalhava, fazia alguma coisa. Se lhe perguntassem o quê, talvez não respondesse logo, assim sem pensar, sem examinar um instante com olhar desconfiado o fim com que lhe faziam a pergunta. Ás vezes, quando se levantava, não tinha de comer; era preciso arranjal-o e arranjava-o. Era talvez pouco escrupuloso; isso sim. --Mas, pensava, para se terem delicadezas é preciso alguma coisa na algibeira. E isso era raro, muito raro. Decididamente, se alguém lhe perguntasse: --Então que se faz? havia de responder como o Visconde, encolhendo os hombros. Depois, como se toda esta cadeia de pensamentos o tivesse conduzido a uma conclusão certissima, olhou para o janota, a rir-se, com certo ar maganão, e exclamou baixinho, como quem faz uma descoberta: --Olá! E, apontando com o dedo pollegar para o Visconde, disse piscando o olho a si mesmo: --É cá do meus. Chegado á rua Nova dos Martyres, o Visconde parou um instante, tirou o relogio da algibeira e, approximando-se de um candeeiro, tornou a ver as horas. Esteve um momento como que indeciso sobre o que havia de fazer; por fim dobrou a esquina e dirigiu-se para S. Carlos. Tirou as luvas da algibeira e começou a calçal-as. --Quando deitará elle fóra o charuto? pensava o homem. Mas de repente affirmou a vista e os olhos faiscaram-lhe: o Visconde ao tirar as luvas da algibeira deixára ficar o lenço com a pontinha de fóra. Contrahiu um pouco as sobrancelhas meditando. Valeria a pena um lenço? Tinha fome. Aquelle lenço representava talvez a ceia. Seria triste na verdade; o que poderia valer um lenço? Estendeu o labio inferior. Era preciso tomar uma resolução. Ora, adeus! Mais valia do que morrer de fome. Approximou-se nos bicos dos pés. Olhou para todos os lados. A rua era deserta. O coração bateu-lhe um pouco. O Visconde podia sentil-o, defender-se, gritar, e elle iria preso, com fome, e passaria a noite a tiritar de frio, fechado n'um calaboiço. Animo! Metteu a mão esquerda por debaixo da aba do sobretudo. O Visconde cantarolava: C'est q'çá gli...iiis...se. Victoria! O lenço era d'elle! O homem não tinha sentido nada e acabava a copla: Encore un qui n'l'aura pas La timbale La timbale. * * * * * Um lenço! Ia finalmente comer. Tinha ganho o dia. E o lenço era um bom lenço, muito branco, muito novo. Mirou-o e remirou-o. Não tinha uma só passagem e era de seda. Era de seda! Queria dizer que representava talvez mais do que a ceia. Quanto poderia valer aquillo? O homem chegou-se a um bico de gaz e poz-se a olhar. De vez em quando, coçava com a unha a aza do nariz, signal certo de duvida. O Gomes é que lh'o poderia dizer. O Gomes era muito entendido; um pouco ladrão, mas muito entendido. E já esquecido do Visconde e do charuto, voltou e dirigiu-se para a Calçada do Duque. A casa de penhores era á esquerda, uma casa pequena, asphixiante, cheia de fato até á porta. O Gomes estava por detraz do balcão, encostado aos livros, com a sua suissa á ingleza, a caneta atraz da orelha, e o seu sorriso protector. Um candeeiro de petroleo, com vidro sujo e luz economica, alumiava fracamente as roupas inuteis, que nas prateleiras até ao tecto esperavam tristemente pela traça ou pelo proximo leilão. Uma guitarra sem cordas pendia de um prego ao lado de uma serra. Do outro lado, o retrato de um bom velho burguez e calvo, com a barba cerrada, ar de pessoa de bem, e um botão d'oiro, quadrado, no peitilho da camisa, sorria com bondosa satisfação para um cacho de botas velhas, que, suspensas do tecto, se lhe baloiçavam a dois palmos do nariz. Tinha valido um dinheirão, valia agora cinco tostões. O homem parou á porta e poz-se á espreita. --Muito boas noites, sr. Gomes. --Olá! --Dá licença? Atirou o lenço para cima do balcão. --Faça favor de ver isso. E, á espera que o exame do lenço acabasse, entreteve-se a olhar para uma borboleta, que esvoaçava em torno do candeeiro. O Gomes desdobrou o lenço, sacudiu-o, levantou um pouco a torcida e começou um exame minucioso, palpando, virando e revirando a seda. --Isto de bordados... Um _A_ e uma corôa. E o Gomes sorriu-se, esforçando-se por ter um ar intelligente. --Foi o sr. Visconde que m'o deu para o empenhar, disse o outro, encolhendo os hombros com impaciencia. --Pois, amigo, diga ao sr. Visconde que isto pouco valor tem. O bordado é bom, o bordado tem valor; mas a quem póde isto servir? Quer trez tostões? --Traste...! resmungou o homem. Então só vale...? Ó sr. Gomes, olhe que roubar é feio. Faça favor de reparar que é de seda. O Gomes, desdenhoso atirou com o lenço. --Dê-me um cruzado e vou-me embora. --Homem, você parece que não sabe quem eu sou! E poz doze vintens em cima do balcão. --Traste! tornou a resmungar o homem, pegando nos doze vintens e encaminhando-se para a porta. --Quer cautella? perguntou o Gomes com ar de brincadeira, já desmanchando o bordado com o bico d'uma tesoira. --Nada. Obrigado. O sr. Visconde não me falou em cautella. E sahiu sempre a resmungar. * * * * * Poucas horas depois, estava estirado ao pé d'uma sargeta. Cahia uma chuva miuda e fria e elle sonhava. Sonhava que tinha roubado um lenço de seda, d'uma seda muito fina, tão fina que nem o Gomes sabia ao principio o que lhe havia de dar pelo lenço. E tinha-lhe dado a loja toda, as botas, a guitarra, o oiro que estava na gaveta do balcão, o dinheiro que estava na commoda, tudo. E elle era rico. Andava de trem e bebia no Baltresqui uma coisa com bolhasinhas a subirem e que fazia saltar as rolhas das garrafas. Os janotas do Chiado tratavam-o por _tu_ e os gaiatos davam-lhe _dom_. O Visconde era muito amigo d'elle e offerecia-lhe charutos magnificos, que roubava a um estanqueiro muito velho da rua dos Canos. Tinha um sobretudo côr de canella, muito quente e andava de luvas. Morava n'um palacio e tinha na salla o retrato do velho que estava na loja do Gomes, e que era pae d'elle, e do outro lado estava o retrato do outro pae, do que tinha conhecido, do que lhe dava pancadas quando elle era pequeno. E o Gomes vinha pedir-lhe esmola. Estava muito magro. O lenço não era de seda, era de papel. E elle tinha um cão muito grande, com olhos de lume, que mordia no Gomes, e o Gomes chorava. --Leva arriba! Um policia de voz aspera accordou-o com um pontapé. E, como o homem resmungava, metteu-lhe a mão por debaixo dos braços e obrigou-o a levantar-se. --Marche adeante e nada de cerimonias. Fôra dia de grande gala e as luminarias morriam nos preguinhos do governo civil. O homem percebia tudo um pouco vagamente. Sentia-se empurrado e via as luminarias. Aquillo entristecia-o. Perguntaram-lhe o nome e ainda teve forças para murmurar com voz avinhada: --Francisco Antonio, o _Mimoso_. * * * * * Quando, pela madrugada, acordou, cheio de frio e de fome, metteu a mão tremula na algibeira das calças e murmurou com voz triste e arrependida: --Fiz mal. E depois d'um instante de reflexão: --Devia ter comprado um massinho de cigarros. GRI-GRI[1] Ao longe, para as bandas de Santos, começavam a apagar os candeeiros. Uma neblina baixa espalhava-se sobre o Tejo, mas no céu, atravez do nevoeiro, brilhava, muito fria, a estrella da manhã, e a lua, como um saveiro de prata, de proa e poppa recurvadas, empallidecia pouco a pouco. Os montes da Outra Banda estampavam confusos no céo embaciado os contornos gigantescos, e no fundo escuro mal se distinguiam as grandes massas negras dos navios. Occulto n'um monte de pedras, um grillo cantava distrahido:--_gri, gri, gri, gri..._ O homem vinha d'aquelles lados do Caes do Sodré. Parecia bastante fóra de si; cambaleava por excesso de cançaço; muito pallido, com o fato em desalinho, o chapéo de palha, amolgado, deitado para a nuca. Parava repentinamente, de quando em quando, como em frente de um obstaculo invencivel, e limpava com as costas da mão as bagas de suor escorrendo-lhe sobre a testa das melenas desgrenhadas, que então sacudia para traz com um gesto violento da cabeça. Seguia aos SS, machinalmente, ao acaso, para onde as pernas o levavam. As abas do casaco desabotoado, onde batia com os braços a dar, a dar, faziam-o parecer na sombra, quando passava junto dos candeeiros, um grande morcego ferido a querer esvoaçar. Vinha de dentes ferrados, olhar fixo, olheiras pisadas. Já se ouviam os barulhos antipathicos do amanhecer na cidade. Recolhiam as carroças dos varredores, e na Praça D. Luiz dois empregados, mudos e somnolentos, limpavam as sargetas do passeio. O homem dos candeeiros vinha-se approximando, fazendo tinir os vidros, ao cahirem depois da luz apagada. Para aquelles lados apenas ficou luzindo uma lanterna moribunda n'uma barca de banhos. Um homem em mangas de camisa, que dormira toda a noite em cima d'um banco, espreguiçou-se muito, dobrou os joelhos, tornou a esticar as pernas e depois, rodando sobre o centro, sentou-se de repente, tirou o barrete, coçou desesperadamente a cabeça. Uns operarios, com o fardel em lenço de chita na ponteira do guarda-chuva, passaram apressados. Por todos os lados, na cidade alta, em roda da Praça e nas capoeiras dos terceiros andares, estrugiam cantos de gallos, roucos e solemnes, conquistadores e desafinados. O homem, que até então seguira pelo meio da rua, approximou-se do passeio. O outro acabara de coçar-se e, como a manhã estava humida, enterrara o barrete até ás orelhas e, de braços cruzados, muito chegados ao peito, fazia, para aquecer, o gesto de quem emballa uma criança. Levantou-se depois e foi para o caes gritar muito prolongadamente--«Ó compadre...! Ó compadre...! Ó compadre...!» Lá de longe, d'uma fragata, responderam-lhe:--«Eh! ti'Zé...!» O homem dos candeeiros passou, e, como o ti'Zé se levantára, o outro sentou-se sem dar por isso, no mesmo banco, perto d'onde o grillo continuava distrahido:--_gri, gri, gri, gri..._ Parecia muito afflicto, em grande desespero, relanceando em redor os olhos, sem fixar a vista em nenhum objecto, como se apenas pudesse olhar para a sua desgraça. Tirou o chapeu, fincou os cotovellos nos joelhos, e com as maçãs das faces sobre os punhos cerrados, arrepelou as barbas para cima dos olhos. Olhando tristemente para o chão, todo curvado, vinham-lhe estremecimentos nervosos, que lhe percorriam rapidos o corpo, fazendo-o levantar as pernas, que recahiam com força; tinha no rosto a mascara pallida e feia da tristeza sem consolo; nas olheiras carregadas e nos cantos dos labios uma amargura dolorosa cavára as rugas muito fundas. Respirava alto, murmurando exclamações irritadas d'uma angustia sem remedio, frases sem nexo, cortadas por soluços. Os fios do telegrapho cantavam sem pausa uma doida melopéa triste, emquanto ao longe, já se ouvia um murmurio indefinido de vida a começar. Algumas chaminés principiaram a deitar baforadas negras de fumo, que, não podendo elevar-se na atmosphera humida, alastrava-se sobre o Tejo. E os signaes das embarcações e o reflexo d'elles n'uma grande faxa tremeluzente faziam como que um bordado a oiro no grande véu esfarrapado de gaze luctuoso. O horisonte branquejava. Ouviram-se nos navios os tiros frouxos da alvorada e de longe chegaram moribundos uns toques de corneta. Junto ao caes passeava, com modos de avejão na densa neblina, um guarda da alfandega friorento. E o grillo sob as pedras continuava distrahido:--_gri, gri, gri, gri..._ O homem ergueu-se n'um impeto, como quem toma uma decisão inabalavel contra argumentos. Cambaleando, arrastando-se, approximou-se do caes. Pequeninas vagas marulhavam docemente e lá do fundo subia um frio humido, desagradavel, frio de morte. Então poz-se a fitar os olhos nas aguas e, como se ellas lhe cantassem uma canção muito meiga, como se ouvisse a voz da melhor amiga, sorriu-lhes desvanecido, mais tranquillo, já quasi convalescente da longa noite de exaspero. Duas grossas lagrimas correram-lhe pelas faces macilentas, o peito oppresso ergueu-se alto, e elle respirou fundamente, passou as mãos pela cara. Pouco depois, preso de pavor medonho, abalou, sem querer olhar para traz, com gestos doidos, d'olhos esbogalhados, chapéu na mão, melenas erriçadas. E, passados instantes, estava outra vez junto do caes, parado, meditando, com os olhos fitos na agua. O Tejo accordára. Do lado do Barreiro surgiam umas velasitas brancas e rio abaixo singrava, orgulhosa, uma grande fragata de vela avermelhada, com uma ancora pintada de negro no panno, projectando na agua immovel como grande placa oleosa, uma imagem tremida, enorme, cortada por uma linha de espuma. Em terra começavam a definir-se certos sussurros. Rangiam portas de tabernas, passavam peixeiras correndo, um guarda nocturno batia fortemente á porta d'um armazem, ouviu-se um despertador no interior d'uma casa. O ceu, muito branco havia pouco, tornara-se côr de laranja. A neblina erguera-se e o fumo das chaminés subia a prumo, alargando-se no alto, como um penacho de porta machado. Então o homem decidiu-se e de braços para a frente, atirou-se ao rio--Chap!--O benemerito guarda d'alfandega, o _72_ por signal, atirou-se atraz do homem. E, quando seguia para a esquadra, acompanhado pelo guarda que gesticulava muito, entre dois soldados da guarda municipal, encharcado, sujo, envergonhado, arrependido, tranzido de frio, o grillo continuava distrahido sob as pedras:--_gri, gri, gri, gri..._ * * * * * Ora isto não quer dizer nada; mas então porque foi que só n'essa occasião é que elle embirrou com o grillo que fazia _gri, gri_? [1] _Variante em verso, publicada pela livraria Popular_ NA BIQUEIRA Ella tem uns olhos azues tão bonitos!... Mas se eu vi! Elle a olhar para cima... e ella a fazer signaesinhos com o lenço!... Vi; ninguem m'o veio dizer... Fui eu que vi! E estas cartas que me escreveu! Talvez em nenhuma fale verdade. Esta ultima é toda mentira com toda a certeza. Quando a escreveu, já foi depois de ter polcado com elle... E chama-me seu _anjo_ a infame! Como póde um homem baixar até morrer por uma mulher assim! Morrer, sim, está resolvido... vou matar-me. Meu pobre pae, coitado! Sempre com tantos sacrificios por minha causa! O que dirá, quando souber que me suicidei? Pobre velhinho! É capaz de morrer de desgosto! Tinha vontade de lhe escrever; mas não tenho animo. Nem animo nem papel. Gostava de me despedir... O resto do papel ainda o gastei a escrever áquella desgraçada! Ah! mas vou afinal vingar-me!... Hei de atribular-lhe a vida com remorsos! Custa-me tanto morrer!... Dizem que só os cobardes é que se matam. E eu acho que é preciso ter animo, muito animo! Mas está decidido. Vou morrer enforcado... Dizem que não doe nada... Mas morrer! Quem foi que disse que não doe? Aqui está a corda. Exactamente do tamanho preciso para que, de manhã, quando ella abrir a janella, me veja pendurado, em frente dos seus olhos, na biqueira do meu telhado. É preciso não hesitar... Infame! Mas que mulher tão infame! E tem uns olhos tão bonitos!... Que besta... o outro! Bem! agora ponho-me a chorar! São saudades de meu pae! Aquella biqueira tentou-me. É de zinco, parece muito forte, algum tanto virada para cima. Vamos. Está frio cá fóra... Chovisca... A noite é escura!... Ali estão as janellas do quarto d'ella, d'onde tanta vez olhou para mim, d'onde tanta vez me falou e me atirou beijos com as pontinhas dos dedos!... Que mentira! Agora faz o mesmo ao outro! Está frio! Será bom vestir o sobretudo... Assim estou melhor, mais conchegado... para morrer! Cá estou outra vez a chorar! Ámanhã, quando abrires as tuas janellas, has de ver, mesmo em frente, o meu corpo, baloiçando-se ao vento soturnamente. O peor é se fico com a lingua de fóra... É tão feio uma lingua de fóra! Eu fico tão feio!... E os olhos...! Os olhos d'um enforcado...! Mas está decidido, está decidido. O enforcado é o mais limpo dos suicidas. Se não fosse o medo já lá estava. Um suicida é um valente! Atemos a corda. Mau! o telhado escorrega...! Se eu cahisse lá abaixo!... Só pensal-o me arripia todo! D'ali é que ella erguia os olhos tanta vez para a minha trapeira! Devagar... Assim.. Parece-me que o laço está bem dado... Quasi que não vejo com as lagrimas... Está bem dado, está; está seguro. O melhor é descer pela corda, e depois, lá em baixo, quando tiver chegado ao fim, metto o pescoço no laço, segurando a corda, devagarinho, muito devagarinho... e deixo apertar. Como é triste morrer assim tão novo, tão cheio de vida!... Morrer!... Chega a ser estupido...! porque afinal eu tinha um futuro talvez brilhante... Um praticante de pharmacia... Morrer assim tão novo! Mas como isto faz chorar! Está frio! Ella dorme...! Se adivinhasse...! Não pensemos mais n'isto. Sejamos homem! Devagarinho...! Estou suspenso sobre o abismo! Uma altura de cinco andares...! Sinto um frio na espinha...! Se as mãos se me escapassem...! Não me despedi bem do meu quarto. Devia de voltar para cima. Afinal fui ingrato com elle. Tive ali momentos bons. A corda dá-me cabo das mãos. Devo estar quasi na ponta... Cá está o laço. Estou mesmo, mesmo em frente das janellas. Se me baloiçasse um bocadinho, tocava-lhe com a ponta do pé nos vidros. Punhamos o laço ao pescoço. Foste tu, mulher devassa, que me fizeste esta gravata!... Agora deixemos apertar devagarinho. Apre! É aspera a corda! É horrivel morrer-se assim! Se ella me visse, se arrependesse e me salvasse! Já tenho os braços cançados...! Que tentação de voltar para cima! Morrer...! Mas é uma desgraça!... uma tolice! Hein? Que é isto? Pareceu-me sentir estalar o zinco da biqueira!... Talvez fosse engano... Mas o melhor é voltar... verificar... Não, não é engano, que horror! Estalou, é certo. Ao mais pequeno movimento estala e dobra! Se verga demais, o laço escorrega e eu esmigalho-me lá em baixo nas pedras da calçada! Quem me ac...! E se ella apparece á janella? Doem-me os braços, já não posso mais! Mas então é certo!... Mas então vou morrer! Mas não quero, d'essa morte horrivel não quero! E não poder subir...! Talvez com um esforço grande, apoiando os pés á parede... Mas o zinco estala cada vez mais, dobra-se todo...! Se eu batesse as palmas ao guarda nocturno...? Mas como? Para bater as palmas seria preciso largar a corda... Se me pudesse segurar com uma só mão, despir-me com a outra e bater as palmas no... Mas nem sei o que penso! Não posso suster-me só com um braço... Sinto faltarem-me as forças!... E se ella abrisse a janella e me visse n'essa posição ridicula? Agora é que é certo! agora é que tenho de morrer!... E ninguem, ninguem me salva! Tenho as mãos a arder; não posso mais. Quem me dera ter animo para gritar!... Ainda que queira subir já não posso... E o zinco verga cada vez mais, ao mais pequeno movimento! Parece-me que sinto passos...! É preciso estar muito quieto...! Valha-me Deus! O laço já correu um bocadinho... Os passos approximam-se... É uma patrulha! Ó camaradas!... camaradas!... Pchiu!... Não são ladrões que tenho em casa, não senhor. Não vêem que estou pendurado?... Acudam depressa!... O zinco está todo dobrado! Depressa!... Sim, senhor, acompanho-os á esquadra. E o laço a escorregar!... Depressa! A porta lá em baixo está aberta. É só preciso arrombar a cá de cima. Tolice! Porque não a deixei eu aberta tambem? E se alguém me quizesse acudir? Os passos approximam-se... Graças a Deus!... está a porta arrombada! Acuda! acuda depressa! Obrigado camarada!... Não ponha o pé no zinco!... Meu Deus! Ó meu pae, coitadinho! Que horror! Ella tem uns olhos azues tão b...! REQUIEM AETERNAM Todas as tardes, quando o azul no alto do céu começava a desmaiar, ou já a enlutar-se nas pregas, pouco a pouco, serenamente accumuladas pela neblina da noite, recolhia a casa, aos solavancos sobre as pedras da calçada, a carruagem das velhinhas. Espantosa, de grandes rodas espessas, ferragens desconjuntas, tecto esboracado, tinta bexigosa, puxavam-a dois cavallos brancos, magros, muito magros, de joelhos grossos, orelhas cahidas, choutando sem brio, coxeando dolorosamente, com um ar de philosophos sem ração a caminho da morte. Atraz saltava a carruagem com um tinir de ferragens, soturno como um ranger d'ossos em dança macabra. E eu encostava aos vidros da janella a testa ardendo com febre, para ver a passagem d'aquellas duas velhinhas sympathicas, irmãs decerto, gemeas talvez, tão eguaes, com os cabellinhos bracos alisados sobre as testas enrugadas, as boccas reentrantes, os olhinhos apagados, tremulas, encolhidas como passarinhos com frio, com os mesmos fatos de luto, o mesmo ar tranquillo, o mesmo sorriso de bondade. Macrobias á espera que a morte viesse n'um beijo perfumado cerrar-vos para sempre os olhos, como devieis soffrer, cabeceando, sacudidas, empurradas brutalmente uma contra a outra pelas mollas duras, aos safanões das sob-rodas da calçada! Boas velhinhas, minha paixão unica, minha esperança d'um dia inteiro, quando eu vivia isolado com a minha melancolia, n'aquella casa onde o vento soprava tristezas, onde o sol nunca entrou e onde as corujas riam de noite! O cocheiro, um velho muito velho, corcovado, segurando tremulamente as redeas, com as mãos pousadas sobre os joelhos, conservava um certo ar de casa nobre, apezar da nodoa esverdinhada, que se alastrava nas costas da sobrecasaca, e do chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho, d'outros tempos muito melhores. Que volta misteriosa dava todos os dias aquella carruagem, que ás tardes ali passava trepando pela calçada? D'onde vinham, para onde iam, em que palacio ou castello arruinado moravam as boas velhas? Quem eram? Nunca o soube. E era talvez por isso que as amava tanto. Architectava historias fantasticas a respeito d'ellas, da carruagem, do cocheiro, dos cavallos, e, quando por fim ouvia o rodar pesado e o tinir das ferragens, sentia o coração pulsando rapido, a respiração difficil, um calor nas faces, como se em vez da decrepitude a caminho do cemiterio, fosse uma primavera cheia de flores e de mocidade, que ali passasse em grande aureola de luz, em nuvem subtil de perfumes. Creio que as velhinhas, n'uma doce, apagada recordação de galanteios havia muito passados, adivinharam o meu amor, e olhavam para mim, risonhas, fazendo renascer faiscas nos olhos côr de cinza, que um sorriso bordava com ondas de preguinhas por cima das rugas! E eu, com a testa encostada ás vidraças, via desapparecer a carruagem fantastica, emquanto a noite descia lentamente e, muito desafinados, piavam lá no alto, em doidas correrias, os negros andorinhões. Boas, santas velhinhas, benza-vos Deus! A calçada subia em linha recta, tendo por fundo o céu ainda vermelho, áquellas horas. A carruagem levava uns cinco minutos até chegar ao alto, e lá em cima, esfumada pela distancia, com as grandes rodas salientes, tombadas para fóra, similhava uma grande borboleta negra, que a descida precipitava na rutilante fogueira do pôr do sol. * * * * * Pouco depois accendiam-se no céo muito pallido as primeiras estrellas. Então um doido, que morava no rez do chão, começava a uivar sinistramente e pela casa espalhava-se um cheiro intenso, um fumo suffocante d'ervas, que a irmã queimava por conselho d'uma bruxa, entre rezas plangentes, arrastadas, de arrelia. Pessimista bilioso, mal com a vida, fugira de parentes e de amigos, e ali vivia isolado, merencorio, cheio de azedumes, n'aquella rua onde os casebres em ruinas se alinhavam tristemente, com vidros esverdeados, telhados cheios de corcovas, paredes desaprumadas, com ervas crescendo junto aos muros em que as osgas aqueciam ao sol os dorsos escamosos. E dava-me bem n'aquella paizagem cuja musica harmonisava com as minhas queixas, n'aquelle scenario que havia procurado e emfim descobrira, onde arrastava as minhas preocupações, os meus desvarios, na prisão voluntaria que escolhera e me era cara á força de melancolica, que eu amava porque me era hostil. Ao meu odio pela gente e pelas coisas, uma só coisa escapára--aquella carruagem a desconjuntar-se, pyrilampo nas trevas da minha noite, nota suavissima no concerto da minh'alma. Tão egual era sempre a dôr que me atormentava, tão parecidos rodavam meus dias, que o verão passou, sem que, olhando para traz, eu pudesse ver na estrada, que andei triste, o marco d'uma alegria, d'um aspecto novo, d'uma miragem na vida. Aquelle amor, aquella quasi paixão, que ao principio as velhinhas me haviam inspirado, esse mesmo sentimento purissimo affligia-me agora, á medida que o sentia crescer. O tempo fôra passando, e os cavallos cada vez choutavam menos, coxeavam mais, mais brancos, mais tisicos, mais dolorosamente meditabundos; o cocheiro mais corcovado, um pouco descahido na almofada, deixava pender o chicote; a carruagem tinha na frente umas tiras de papel sobre um vidro rachado; cordas, a que todos os dias se juntava um nó, ligavam os arreios; as velhinhas tinham menos palhetas doiradas no olhar, quando me sorriam. E já me sorriam como a pessoa conhecida, que occupasse na vida d'ellas o logar em que moravam na minha, o que augmentava a minha tristeza. Agora, cada vez que lá no alto da calçada se afundava a carruagem, ficava scismando se teriam desapparecido de uma vez todos os meus sonhos, tudo--que era sómente aquillo--quanto á vida me prendia. O verão, muito lentamente, assim foi rodando, até que vieram as primeiras chuvas. Que tarde turbida e melancolica! Se não viessem...! E de tanto pensar n'ellas, vi qual era sua pousada na minh'alma. Se não viessem...! Dia immenso em que, cheio de inquietações passeei pelo quarto até entontecer, approximando-me da janella a cada instante, vendo apenas na solidão da calçada a chuva a cahir, a cahir, rio enorme, que se despenhava até lá abaixo, rolando barrento, cheio de espuma, quebrando-se, saltando sobre as pedras arrancadas, bi-partindo-se lá no fundo, desapparecendo na curva e galgando as escadinhas, onde se precipitava em cascata, com uma bulha monotona... O doido, a quem a meia escuridão d'aquelle dia exacerbára a furia, torcia-se, berrava como um possesso; e logo de manhã espalhou-se pela casa o tal cheiro que eu detestava, de alfazema queimada, de alecrim e d'outras ervas com que o demonio embirra. Dia immenso, que me parecia não dever acabar! Na minha imaginação exaltada via, como de então para cá vi sempre, um ente unico n'aquella carruagem, com as donas, os cavallos, o cocheiro, como se uma só alma os animasse a todos, não podendo desligal-os, abstrahir d'uns para só pensar nos outros. O dia vinha descendo e, ancioso, sentindo pelo ser fantastico que me fazia pulsar o coração, aquelle fervoroso amor, que os encarcerados dedicam ás vezes a uma formiga, a uma aranha, a uma plantasinha qualquer, com as unhas cravadas na carne do peito, tive uma das mais doidas alegrias da vida, quando senti sobre a lama que se alastrava de lado a lado, o rodar lento, abafado, por que suspirava semi-doido. Os cavallos gemiam, suavam, lançando pelas ventas baforadas densas. As sob-rodas, occultas pela lama e que o cocheiro não evitava, cego pela chuva que o zurzia, faziam cambalear o trem como um ebrio. E lá dentro mal pude avistar, atravez dos vidros embaciados, as velhinhas que sorriam. Abri a janella para as ver desapparecer. Julguei que nunca chegassem ao alto. O cocheiro com um gesto afflicto brandia o chicote; os cavallos pegavam-se, ajoelhavam na lama; as molas estalavam. Chegaram finalmente. Disse-lhes um adeus maguado. E emquanto a noite descia, sentado junto da janella, parecia-me ver, como n'um sonho, a carruagem fugindo, fugindo, por uma estrada que não acabava nunca, levando no tejadilho, de pé, como os anjos dos coches de enterro, a figura da morte. E a chuva cahia, cahia, e a noite embrulhava-se n'um véo muito negro, cheia de frio. * * * * * Nunca mais as vi. Passaram-se mezes. Na terça feira de entrudo uns mascarados bebados, que desciam pela calçada, traziam adiante aos pontapés, em grande troça, um chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho... Boas e santas velhinhas! _Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis._ AS ESTRELLAS DO CEGO Noite de Natal. Terminára a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degráos em ruina da larga escadaria. A noite era cheia de estrellas, luzes d'altar immenso sob o immenso docel de velludo azul. O céo muito frio parecia rir-se, a piscar os olhinhos alegres. Ainda nos eccos da alta abobada em berço resoavam os ultimos cheios do orgam do convento. Pela porta aberta de par em par, onde a multidão se acotovelava á sahida, vinha de dentro da egreja um perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada. O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de zig-zagues rutilos as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa Familia e na colxa de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus dôrmia. Tocavam sinos, e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da noite fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. A larga frontaria da egreja, comida pelo tempo, abafada n'um velho tapete de musgo, sobresahia no céo em mancha muito negra, d'onde jorravam feixes luminosos, ondas de harmonias, luz e canticos de triumpho. Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão. Iam fechar-se as portas. Sahiam os ultimos devotos. O cego era um velho corcovado, tremulo, com a face cheia de rugas crusadas, como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz voltava-os para o céo, meneando a cabeça constantemente, como se procurasse... o quê? E sorria. Dava a mão ao petizinho e descia os degraos tacteando-os com o pé. --Ainda mais um, avô... E outro... E outro. Fechou-se a egreja. O candeeiro da esquina mal alumiava o adro. E o cego sorria e afagava a mão do pequeno. O povo espalhou-se pela ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a cidade. Vinha a gente descendo pelos beccos angulosos, pelas travessas em declive rapido. E parecia que todos levavam n'alma um pedaço de luz d'aquella noite em Belem cantada nos evangelhos, da alegria d'aquella musica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o côro entoou o _Gloria in excelsis_! Todos falavam, todos riam, muitos cantavam. Era a ceia prompta em casa, era o dia seguinte todo elle inteirinho de descanço! Noite de Natal! Noite de Natal! E eu fui por ali abaixo tambem, atraz do cego. O pequenito teria oito annos. Loiro. D'olhos azues. Olhava para as estrellas a rirem lá em cima. Os olhos tinham a côr do céo, e o que n'elles brilhava tanto podia ser o reflexo das estrellas como a luz placida da sua almasinha. Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. Á voz tremula do velho replicava compassadamente o pequenino. E o que elle dizia com a sua vozita infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô ainda como um cantico, como se um anjo d'aquelles, que haviam aos pastores annunciado a vinda do Senhor, houvesse ficado na terra; porque o cego continuava sorrindo, e, a descer pelos beccos escuros e tortuosos, afagando a mão do netinho, fitava os olhos condemnados ás trevas lá em cima, lá muito em cima, d'onde vinha aquella luz toda, que alegrava os olhos da criança. Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, palavras soltas, por onde, mais ou menos, reconstituia a conversação. Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam fome. A mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas vezes, gulosamente: --A canja. E o pequeno: --Degráo, avôsinho. E o cego, muito attento, vagarosamente, tacteava o degráo com o pé, afagando a mão do neto, cantarolando. Pelos beccos, pelas travessas, sob os arcos dos pateos irregulares, cheios de sombras, disseminara-se a gente. Iamos agora sós, nós trez, n'aquelle caminho. Ouviam-se ainda passos ao longe, eccos de vozes, uma ou outra guitarra em lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando em quando, um bater de palmas ao guarda nocturno, passos correndo, um tinir de chaves. Um gallo cantou n'uma trapeira. --É tarde, disse o velho. Caminhavam mais depressa agora. E eu ia andando atraz d'elles, sem saber bem porquê, atrahido talvez pela doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por ver tanta alegria onde tanta miseria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dôr devia de suppôr-se. Passei-lhes adeante. Esperei junto de um candeeiro. Queria ver-lhes ainda uma vez os rostos. O cego continuava a olhar para o céo, meneando a cabeça. O pequenito ao lado, agora que na rua tinham acabado os tropeços, olhava para onde olhava o cego. A cabelleira loira, toda em anneis, não lhe cabia dentro do chapéo e cahia-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces, pelas costas. Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir! Deixei-os passar adeante. A rua alargava-se entre casarias irregulares. Caminhavam mais á vontade agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição. Faziam ecco no silencio da noite os nossos passos sobre a calçada, na rua deserta. Pararam. O velho bateu cinco argoladas á porta de uma casa esguia, com grades de madeira nas janellas cheias de vasos. Passados poucos segundos, ouviu-se a pancada violenta do trinco puxado com força desde lá de cima. O cego e o pequeno desappareceram na escuridão da escada. A porta bateu com estrondo. Ouvi ainda o velho cantarolando, emquanto subia. Pouco a pouco a voz sumiu-se. Encostei o ouvido á fechadura: uma bulha de passos apagando-se, mais e mais, a cada volta da escada; uma voz muito alegre--devia de ser a da mãe do pequeno recebendo-os--palavras que não percebi... E fechou-se lá em cima uma porta. * * * * * Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquella casa. Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez as cordas da minh'alma vibrassem ainda em unisono com os cantos d'aquellas vozes tão devotas, singelamente entoados por detraz das grades do côro, hymnos muito simples ao Deus Menino nascido. No céo de immaculada pureza as estrellas vibravam raios de luz intensissima. Fazia frio. E eu quedava-me a olhar para aquella casa, tão pobresinha, tão velha, tão escura, tão cheia de flores d'alto a baixo! Uma janella no telhado illuminou-se. Começava a ceia do velho. Eu reconstituia o grupo dos trez: a mesa encostada á parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os perfumes da sopa, a terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno defronte do avô, e a mulher a sorrir-lhes, ouvindo-lhes as historias, o throno, o presepio, a missa, o canto das freiras, a vinda por ali abaixo a horas mortas, a minha perseguição. E o pae do pequeno? Ah! sim, esse tambem lá estava... Pois quem trabalha para sustentar a alegria n'aquellas almas?... Santa familia! Que deliciosa ceia! Que paz tranquilla! Que boa noite de Natal! Tanto falava o cego na canja, rua fóra, pela mão do pequeno! Quem não tem olhos, tem melhor paladar. E o pequeno como devora! É que é tarde e não costuma estar de véla áquellas horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe começam a fechar. E o pae e a mãe a rirem, contentes de os verem assim! Que boa noite de Natal! Fitára os olhos na janella, não sabia d'ali apartal-os. Tambem eu agora olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrellas, o cego não sei para onde. Porque olhava o cego para o céo? Tornou o gallo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como quem já adivinha a madrugada. Ha quanto tempo estava eu ali? Porque olhava para aquella trapeira? Encaminhei-me vagarosamente para casa. Havia tantas estrellas no céo! Como era linda a noite de Natal! Como tinha razão o pequenito dos cabellos loiros de olhar para as estrellas! Que quantidade de luz! Tantas! Tantas!... Talvez o pequeno se lhe mettesse em cabeça de contal-as! Houve uma, quando vinhamos pela travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito longo... Era como a estrella dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do pequenito! E o cego sorrindo ao pé d'elle, com os olhos tenebrosos postos no céo! Porque? É que se lhe voltavam para lá os olhos d'alma, é que na alma tinha elle mais luz do que o pequeno nos olhos. E vejo-os ainda a descerem pelos beccos, o velho meneando a cabeça, o pequenito a dar-lhe a mão? Degráo, avôsinho? ambos com os olhos no céo, a estrella a correr... Que lindas estrellas vê o cego! OS NETOS Andavam todos pasmados, a falar baixinho pelos cantos. O D. Affonso parecia outro! Se fosse um Affonso qualquer!... mas o Dom, o quarto, o do Salado!... Quem jámais o vira assim de olhar tão doce na sombra do supercilio carregado, de riso tão lhano sob as enormes barbas patriarchaes, honradas entre as mais honradas dos affonsinos? O Coelho, que, havia muito, andava tramando o crime, até disse baixinho ao Pacheco:--«Ali ha coisa!» O Pacheco já a farejára, olha quem! E entretanto, o D. Affonso, todo fóra dos eixos costumados, dizia graças, quando passava alguma dama a rojar sedas na peugada da linda Inez. Ia seu caminho o drama tenebroso. Tanto haviam feito, que já tinham escangalhado o socego da que depois de morta foi rainha. E o sceptro, sobre que tão famigerados heroicos havia de bordar o Dr. Ferreira, parecia pesar nas mãos do monarcha menos do que se fôra de pechisbeque, talvez tanto como de papelão doirado. É que n'aquella noite... O homem tinha um fraco: pelava-se pela canja! Elle em pessoa comprára a gallinha, uma ave amarella, que era uma belleza, gorda, anafada... Depois de muito regatear, e por ser a elle, D. Affonso, é que a saloia a vendêra por seicentos e vinte! Um rico pedaço de toucinho, um bom naco de prezunto, o bello chouriço, cheirinhos, arroz da melhor tenda... Ora adeus! Um dia não são dias. Aquella noite de Natal havia de ser falada! E, por debaixo dos longos bigodes brancos, brancos de neve, El-rei lambia os beiços. Chovia a potes. O drama terrivel, a mais calamitosa tragedia da historia patria, ia-se pouco a pouco desenrolando. Inez lamentava-se. Os horrificos algozes haviam-a trazido ante o rei. Eram tres judeus de calvario de semana santa, muito capazes de dar sete pesadêlos a quem não estivesse prevenido. Muito cabello, muita sobrancelha, muita barba, vozes de tyrannos. Ella erguia para o céo cristalino os olhos piedosos, attentava nos meninos cheios de somno, falava ao avô cruel nas brutas feras e nas aves agrestes, na mãe de Nino e nos irmãos que Roma edificaram; queria ir fosse lá para onde fosse, para a Scythia fria ou para a Lybia ardente, comtanto que a tirassem d'ali. Era de partir os corações! Mas aquelles patifes, de punhaes desembainhados, sanhudos, faziam esgares! E a desditosa amante do Principe, entre soluços e lagrimas, pensava:--Que demonio tem hoje o D. Affonso? O rei só via a canja, os olhinhos da gordura, o arroz muito branco... E arregalava o olho e abria a venta! Ah! que delicioso quadro! Que lhe importavam a linda Inez de rojo a seus pés, as iras do filho apaixonado, a politica do reino, as Hespanhas, os Castros? Uma trapeira, que, toda envolta em arroz de telhado, era como um ramalhete, n'uma rua estreita, escura, tortuosa, para lá lhe tugia o pensamento. Em volta d'ella cantavam pardaes todas as manhãs, e o sol mal nascia, pintava-lhe os vidros como se fossem pedras preciosas, rutilantes. Tanta paz lá dentro, tanto riso de creanças! Noite de Natal muito fria. Ih! como chovia lá fóra! Cantava a agua, cahindo em jorros das biqueiras sobre as pedras das calçadas. Como estavam lamacentas as ruas, cheias de poças! O vento do sudoeste arrastava pelo céo as nuvens desgrenhadas, e chovia sem descanço. Lá dentro da trapeira, tanta luz, tanta alegria! Noite de Natal! A toalha resplandecia muito branca sobre a velha mesa herdada dos avós, um nadinha coxa e remendada. Era um velho traste amigo, n'aquella noite todo enfeitado para a festa. O candeeiro, entornando sobre a alvura do linho um circulo de luz aconchegador, fazia faiscar as laminas das facas, estriava com fogo os cabos muito limpos das colheres. O pão, ha pouco vindo do forno, ainda fumegava embrulhado na flanella, e seis guardanapos engommados ostentavam formas caprichosas, em cima dos pratos: pombinhas, leques, romãs abertas. Lá dentro, na cosinha, riam as crianças. A mais pequenina, uma gorducha rosada e muito loira, fechava os olhos cançadinhos de somno, teimando em não querer deitar-se, que havia com as mais velhas de assistir á grande festa. E a panella a chiar e o vinho a aquecer e o quebrar das nozes! Vá lá um homem ralar-se com a politica do reino, ter consciencia de sua altissima missão, comprehender o direito divino, recalcar no coração a piedade e ser cruel contra o proprio filho meio louco de amor e que a dôr tornaria completamente louco, contra os infantes seus netos, contra a formosa fidalga chorosa, que deixava espalhar pelos hombros os fartos cabellos pintados de loiro! --Pois sim, cantem, pensava elle. E respondia tão distrahido, tão fóra do sentimento, que todos, pasmados, diziam: --O D. Affonso... ali ha coisa! Corriam-lhe pelas faces uns arripiosinhos, impaciencias perceptiveis sob as enormes barbas todas brancas, fazendo-lhe tremer as azas do nariz e os cantinhos das fartas sobrancelhas. O filho, o D. Pedro, com voz de trovão, arrancava do peito as ultimas exclamações e afastava-se a largos passos para ir pegar em armas. A côrte, attonita, afflicta, corria para a vasta janella rendilhada para ver o desgraçado amante atravessar os pateos, chamar os seus, com elles dispor a vingança. Era então que o velho heroe do Salado, desgraçadinho, cheio de lagrimas na voz, com o coração dilacerado, deante do corpo inanimado da linda Inez, havia de soluçar altissimas philosophias sobre a vaidade das vaidades, o peso d'aquella corôa sobre as cans, d'aquelle sceptro nas mãos decrepitas. --A canja, a canja! pensava elle. E ainda o ecco murmurava os últimos gemidos d'aquelle diabo de tragedia, e já o D. Affonso galgava a quatro e quatro os degráos da escada, sem corôa, sem sceptro, sem barbas, respondendo ao contra-regra, que o chamava para ir agradecer os applausos da claque: --Vão para o diabo! E, meia hora depois, que alegria! Quando chegou a casa, em volta da mesa, a filha, o genro, os tres netinhos, todos a cantarem o hymno da carta:--Tchim! Tchim!... Taratatchim! Taratatchim! Que bem que cheirava a canja! Aquella noite de Natal havia de ser falada! A BURRINHA BRANCA Meu avô tinha uma burrinha branca, que parecia um macho. Era branca e lustrosa como um cotãosinho de serralha, esbelta, com as mãosinhas muito finas, viva, com as orelhitas muito curtas. Uma estampa. Quando o avô sahia n'ella, não havia general em campo de batalha que mais garboso se apresentasse. Tic-tic!--lá iam os dois pelos caminhos. Vinham as mulheres ás portas e era um côro: --Benza-te Deus, burrinha! É que tinha uns modos que prendiam o olhar de todos. Homens havia que embirravam com o avô, por causa d'aquella fortuna, e diziam ao vel-os: --Raios os partam! Mas o velhote não cuidava de mulheres, despresava invejosos e só pensava na burra. Chamava-se Pomba, pomba por dentro e por fóra, tão branquinha d'alma como de pêllo. Muito meiga, quando o avô lhe levava a ração, esfregava n'elle a cabeça, mexia as orelhas e dava ao rabo, que é o modo por que os burros fazem festas á gente. O avô dava-lhe beijos. Por todas essas aldeias, nunca vi gato nem cão, animalzinho mais querençudo. Assim passaram muitos mezes de muita paz e socego. Lá o nosso visinho sapateiro é que se mordia de inveja. De amarello que era fez-se verde, de magro um trinca-espinhas. Era dono d'um cavallinho lazão, coxo, pelludo, calçado de tres pés e bebendo em branco. Pois ainda queria comparar o diabo do homem!... Ora isto da malha branca da testa correndo pelo focinho até ao beiço é de mau agoiro. Diziam os moiros que os cavallos assim marcados tinham na cabeça a mortalha do cavalleiro. Até onde seja verdade não sei; mas vi mais d'uma vez o lazão aos coices nas estrellas e o sapateiro no chão com as costellas amolgadas. Pois, apezar d'isso, só para fazer rabiar o avô, dizia que não trocava!... A Pomba era um apetite. Invejavam-lhe ovelhas a mansidão. O avô calava-se, porque bem conhecia o sapateiro. Ria-se, sem que ninguem desse por isso, que eram tantas as rugas na cara, que mais uma menos uma não fazia differença. Onde se lhe conhecia a alegria era nos olhos, uns olhitos pequeninos, já sem côr. A burrinha a trote,--tic-tic!--e elle: --Bons dias, visinho! Então o cavallicoque escanzelado, muito malcreado, tinha o máu sestro de rinchar. O avô não gostava do atrevimento; mas que havia de fazer senão conformar-se com o namoro desaforado de quantos quadrupedes na terra havia? Era a linda cabecinha branca apontar entre os humbraes da cocheira e logo cada zurro de repicaponto, que, fosse a Pomba como certas mulheres, seria a aldeia um céo aberto. Ella, muito dengosa,--tic-tic!--olhava para todos de soslaio, mas nenhum encarava de fito. Eu levava-a muita vez a pastar. E, como o avô não queria que ella perdesse um só ponto da reputação, dizia-me sempre: --Não percas o animalzinho de vista. Não deixes de pear a burra. Nem o mais pintado se lhe havia de chegar, que eu tinha sempre o olho n'ella e nunca as peias me haviam esquecido. Entretanto chegou o mez de abril e toda a charneca se encheu de flores, desde as copas mais altas dos sobreiros até ás ervinhas, que se escondem envergonhadas debaixo das moitas. A burrinha abria muito as ventas, respirando o ar fresco da madrugada, que cheirava a alecrim e a rosmano, que nem eu sei encarecel-o! Os estevaes eram todos em flor e a charneca parecia um mar todo elle verde e branco, quando o vento cursava por essas mesas fóra. Ella gostava de ouvir os passarinhos, que até parece que os entendia. Não ha como máus exemplos. Andava azougada e o avô inquieto. --Peia-me a burra, dizia sempre. Iam tamanhos desaforos pela aldeia...! Mas quem havia de pensar...? * * * * * Ora, por esse tempo, a Pomba fez quatro annos, o que é tambem a primavera na vida dos burros. Uma certa manhã, o sol, depois de trez ou quatro dias de choviscos, appareceu de repente limpo de nuvens e com tanta luz, que as abelhas embebedaram-se todas. Era um zunir lá pelos ares, que até dava alegria á gente. E lá em baixo no montado, ao pé do rio, ainda os rouxinoes se não tinham calado, já os trigueirões andavam cantando. Era dia de festa tanto na terra como no céo! Ora um homem póde ser marréca, aleijado e feio como eu sou, ha coisas que lhe vão direitinhas á alma. Larguei a burra no ferregial e fui-me deitar debaixo da figueira. Dizem que o sol, quando nasce, é para todos; porque não havia de haver uns raios para mim? Tanta moça boa na aldeia e eu estropiado, sem me atrever... Puz-me a olhar para aquelles montes, d'onde o sol vinha a subir. Um moinho ao longe bracejava, com as velas muito brancas, que mal se viam no céo todo em volta cintado de côr de sangue. Zuniam as abelhas, cantavam os passaros, e o cheiro das flores, em que me tinha deitado, trepava-me á cabeça. Fechava os olhos encadeados com a luz do céo e punha-me a sonhar. O sol appareceu por detraz do monte, correu uma aragem, as florinhas do rosmano curvaram-se, escondendo-se na troca dos beijos. Passaram no ar duas borboletas brancas, uma atraz da outra, e pelas ervas andavam gafanhotos aos saltos. Eu pensava em muita coisa junta e cantarolava baixinho uma cantiga, que tinha ouvido de longe, n'um baile da véspera: Qual a distancia e a lonjura Onde o sentido caminha, Onde é que elle vai parar, Isso ninguem adivinha. Ora os versos que eu cantava, a burra tambem os sabia. Tinha-me esquecido peal-a e, quando voltei a mim, não vi da burra nem rastos! E ali fiquei eu, não sei que tempos, como um simplacheirão, de queixos cahidos e mãos a abanar, sem achar uma idéa que me allumiasse, sem ver remedio de vida, a tremer das furias do avô. Depois, muito cosido com as paredes, fui até á cocheira. Talvez a Pomba tivesse tomado o caminho de casa. O avô, satisfeito como um gato ao borralho e descançando em meu cuidado, assentára a barba sobre o peitilho, e no pateo, sentado no banco de pedra, dormia ao sol. A burra não estava. Fui para a charneca. Onde via esteva pisada, procurava achar um rasto. Levava n'uma palhinha a medida certa da ferradura; mas as poucas horas de sol n'aquella manhã tinham endurecido a terra. O sol foi subindo e até ao meio dia andei leguas. O coração batia-me tanto, que me fazia doer. Não parei. Ia á doida, sem destino. Bateram na villa ave-marias. Dei por mim a quatro leguas da aldeia. Calaram-se os passaros; as papoilas das estevas enrolaram-se para dormir; anoiteceu, e eu deixei-me ficar toda a noite na charneca, a tremer de susto e de frio. Toda a santa noite um mocho piou e eu pensei na coça que me esperava. Se não fosse a marréca, tinha fugido para assentar praça. Uma d'aquellas só pela fortuna! E toda a noite tive nos ouvidos a mesma cantiga... Mas quem podia adivinhar...? Era quasi madrugada, quando cheguei a casa. Mal o avô me avistou, bateu-lhe o queixo como em terçãs, e até os beiços se lhe fizeram brancos. --E a burra? perguntou. Por felicidade, n'essa altura, a Pomba entrou no pateo, a passo, de orelha muito murcha, como quem traz peso na consciencia. Foi o que me valeu. Eu, que tanta praga durante a noite lhe rogára, tive até vontade--palavra!--de desatar aos beijos á minha salvadora. Mas já o avô a tinha agarrado. O desgosto não lhe havia feito esquecer o costume, pelo contrario, e uma melhor matadella de bicho tornava-o ainda mais terno. O que elle disse á burra! O que elle lhe disse! * * * * * Mas embora o velho perdoasse, o mal estava feito. Breve d'isso se convenceu. Primeiro foram apenas suspeitas, passados dias uma certeza. O avô andava envergonhado. Já, quando passava em frente da porta do sapateiro, não largava chalaças para a loja. O caso tinha sido falado. Isto de más linguas na aldeia!... O avô parecia-lhe que a honra da burra tinha o que quer que fosse com a honra d'elle. D'antes sempre cantando--_tiro-liro-liro!_--andava matuto agora. «Quem seria?... Vão lá saber!» Nasceu-lhe um odio enorme a todas as cavalgaduras a quem pudesse attribuir a desgraça. Desafogava comigo e dava-me bofetadas, cada vez que dizia «não a peaste!» O asno do moleiro era amarello com uma cruz nas costas e tinha fama de requestado. Nunca mais o poude ver. Contra todos tinha uma pedra no sapato e, quando o lazão rinchava, dizia:--«Desavergonhado!» Mas não desconfiava d'elle. Tão feio!... Quiz ver se a Pomba se trahia. Quando passeava pela aldeia na burrinha, ia-lhe sempre observando qualquer gestosinho das orelhas. E ella muito seria... tic-tic!... * * * * * Uma madrugada vim dar parte ao avô de que havia mais um machinho na cavallariça. Nem sequer acabou de engolir o copinho de aguardente e atravessou como doido o pateo. Um macho! Um macho!... Mas então quem?... quem? A luz da alvorada mal coava pelos intervallos da telha vã, cobertos de teias de aranha, onde se baloiçavam palhas. Foi preciso que eu accendesse a candeia. Como a Pomba enternecida lambia o filhinho! Era um machinho lazão, muito feio, calçado de tres pés, bebendo em branco. Quando o avô lhe não deu ali um estupor, é porque já não morre. O caso, é claro, fez bulha, ainda mais do que o primeiro. Eram quasi dez horas da manhã, quando o avô, que se fôra encostar na cama, ralado pelo desgosto, ouviu uma voz alegre, que lhe gritava: --Parabéns! Veio á porta furioso e mostrou o punho ao sapateiro, que se afastava, rindo, a chouto, no lazãosinho coxo, pelludo, calçado, dos trez pés e com a tal malha de máu agoiro... Ora o que desconsolou o avô foi o que me deu alegria para a vida. Aquillo do cavallicoque animou-me, porque a burra estava despeada e foi até onde muito bem lhe pareceu. São gostos. Pobrinho d'uma figa n'alma, no corpo e na algibeira, vivi desde então com uma esperança. * * * * * Quando o marrequita acabou de contar a historia, a Caetana que andára servindo os freguezes, poz-se vermelha... vermelha... --Até mais logo, disse elle, sahindo. O diabo do marreca tinha sorte! INDICE Pag. As Mães 1 O Baile dos velhos 13 A Outra 27 O Paquete 47 Perdido 63 Ad Astra 77 O Ventura 95 O Primeiro sorriso 113 O Meu rewolver 127 O Mimoso 139 Gri-gri 153 Na Biqueira 161 Requiem aeternam 171 As Estrellas do cego 183 Os Netos 195 A Burrinha branca 203 LIVRARIA EDITORA GUIMARÃES, LIBANIO & C.IA 108, R. de S. Roque, 110--LISBOA *Mulheres da Beira*, contos, de Abel Botelho--1 vol. broch. $700 *Os Amores de Camillo* (Biographia amorosa de Camillo C. Branco) por Alberto Pimentel--1 vol. illustrado, broch. 1$200 *Lyra insubmissa*, versos de Abel Botelho--1 vol. broch. $500 *O Lubis-homem*, comedia em 3 actos, de Camillo C. Branco--1 vol. broch. $600 *Historia do Culto de N. Senhora em Portugal*, por Alberto Pimentel--1 vol. de 500 pag. in-4.º com mais de 80 gravuras--br. 2$000, enc. 2$600 *Cartas da Condessa d'Alve*, romance, por Daniella--1 vol. broch. $500 *Pintores e poetas de Rilhafolles*, por Julio Dantas--1 vol. ill. $400 *Viagem á roda das viagens*, por Alberto Pimentel--1 folh. impresso em papel de linho $200 *Tratamento natural*--(7.º vol. da Collecção do povo) pelo dr. João Bentes Castel-Branco--1 vol. cart. $100 *Meia Noite*, peça em 3 actos, de D. João da Camara--1 vol. br. $500 *Rindo...*, contos de D. Claudia de Campos--1 vol. br. $700 *Pela Vida fóra*, memorias, de Silva Pinto--1 vol. broch. 800 enc. 1$000 *O Sonho da Rainha*, por Alberto Pimentel--1 folheto $100 *Pedro Alvares Cabral e o descobrimento do Brazil*, por Faustino da Fonseca--1 vol. cart. $100 Notas de transcrição: O texto aqui transcrito, é uma cópia integral e inalterada do livro impresso em 1900. Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a interpretação do texto, e que por isso não considerámos necessário assinalá-los. Mantivemos inclusivamente as eventuais incoerências de grafia de algumas palavras, em particular quanto à acentuação. End of the Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS *** ***** This file should be named 31905-8.txt or 31905-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/3/1/9/0/31905/ Produced by Pedro Saborano (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.net/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.net), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.net This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.