Project Gutenberg's Theophilo braga e a lenda do crisfal, by Delfim Guimarães

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Title: Theophilo braga e a lenda do crisfal

Author: Delfim Guimarães

Release Date: May 15, 2008 [EBook #25479]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Maio 2008)



Theóphilo Braga

E

A LENDA DO CRISFAL






Obras de Delfim Guimarães


PROSA:
Alma dorida, com prefácio de Teixeira Bastos, 1 vol broch. 500 réis
A Viagem por terra do snr. João Penha, (crítica literária) 1 folh. 100 »
O Rosquedo (Scenas da vida de província) Esgot.o
Ares do Minho (Contos) 1 vol. broch. 200 »
Bernardim Ribeiro: O poeta Crisfal (Subsídios para a Historia da literatura portuguêsa) 1 vol. broch. 800 »
 
EM PREPARAÇÃO:
Luis de Camões.―Diogo Bernardes.
 
VERSO:
Lisboa Negra, 1 fol. 200 »
Confidencias, 1 vol. broch. 400 »
Evangelho, 1 vol. 400 »
Não! Mil vezes não! 1 fol. 200 »
Sim! Mil vezes sim! 1 fol. 100 »
Sonho Garretteano Esgot.o
A Virgem do Castelo, (2.ª edição) 1 fol. 100 reis
Outonaes, 1 vol. broch. 500 »
 
NO PRELO:
Flores do mal (interpretação em versos portuguêses de poesias de Carlos Baudelaire)
 
TEATRO:
Aldeia na Côrte, drama em 3 actos, de colaboração com D. João da Camara, representado no D. Amelia, 1 vol. broch. 500 réis
Juramento Sagrado, comedia n'um acto em verso, representada no D. Maria II, 1 fol. 200 »
 
A PUBLICAR:
Domingo de Páscoa, peça de costumes minhotos
 
OUTROS TRABALHOS:
A Dama das Camelias, de Dumas, filho (tradução), 1 vol. broch. 200 réis
Saudades, (História de Menina e moça), de Bernardim Ribeiro, edição revista (vol. 29 da Colecção Horas de Leitura) 200 »
Trovas de Crisfal, de Bernardim Ribeiro, edição revista 300 »
Versos portuguêses, de Sá de Miranda, edição revista 500 »





DELFIM GUIMARÃES


Theóphilo Braga

E

A Lenda do Crisfal





1909
Livraria Editora
GUIMARÃES & C.a
68, Rua de S. Roque, 70
Lisboa






THEÓPHILO BRAGA
E A LENDA DO CRISFAL




I

Razão de ser d'este livro


Quando em maio de 1908 tornamos pública a conclusão a que haviamos chegado de ser Crisfal um pseudónimo do autor da Menina e moça, como procurámos demonstrar no volume recentemente dado á estampa: Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal), tinhamos o convencimento pleno de que uma tal nova, divulgada pela imprensa, seria bem acolhida por quantos se interessam pelo estudo da nossa História literária, com excepção apenas do snr. dr. Theóphilo Braga. O laureado professor do Curso Superior de Letras não perdoa a quem quer que seja que ouse discordar de suas sentenças, nem vê com bons olhos que outros, que não s. ex.a, encarem problemas que se prendam com a História da literatura portuguêsa.

E n'este caso do Poeta Crisfal, mais do que em nenhum outro, o snr. dr. Theóphilo Braga não desejava que ninguem bulisse, pelo motivo que teremos ocasião de apontar no decurso d'este livro.

Não contavamos com o acolhimento benévolo [6] do infatigavel escritor. Para fundamentar o nosso juizo, bastava-nos invocar os precedentes sabidos, tristemente lembrados, e, muito em especial, o desforço pouco generoso do snr. dr. Theóphilo Braga para com a memória d'esse desventurado que se chamou Antero,―porque o poeta incomparavel dos Sonetos ousara flagelar o dogmatismo scientífico do antigo camarada universitário; o fel que o plumitivo da Historia da Litteratura deixa transparecer nas apreciações com que, baldadamente, procura amesquinhar a figura gigantesca de Herculano,―porque o insigne historiador nacional jàmais se associou aos turibulários do filósofo comtista (sem calemburgo);―o desdem com que o professor de literatura apoda, soberanamente, de gramático, o distinto romanista, snr. Epiphánio Dias,―por este haver despedaçado, com a autoridade do seu nome, aquela invenção alegre dos cantos de ledino, em que o snr. dr. Theóphilo continua a persistir, apesar de tudo, com manifesta falta de sinceridade.

Mas não ignorando taes precedentes, e conhecendo que o estudo que iamos apresentar ao público não deixaria de nos acarretar a má vontade do autor da História da Litteratura Portugueza, nem por um momento hesitamos em levar a bom termo o nosso trabalho, tendo em atenção tam sòmente que se tratava de desfazer uma lenda, estúpida como tantas outras lendas, que privava de parte da glória a que tinha jus o nome aureolado de um dos maiores poetas portuguêses, o delicado e inditoso Bernardim Ribeiro, o nosso querido Bernardim.

Derruíamos a coluna em que se firmava um espantalho, mas erguiamos a um pedestal mais [7] grandioso e altívolo a figura amoravel do grande bucolista.

A literatura portuguêsa só ganhava com a descoberta. Que, se alguma cousa perdesse, era sobeja compensação o que se conquistava para a verdade histórica...

Mas a proclamação de uma tal verdade ia prejudicar um livro, ou livros, do snr. dr. Theóphilo Braga... Não havia dúvida. Que importava isso? Para reivindicar para Bernardim Ribeiro a autoria da Carta e da Écloga de Crisfal, não valeria a pena sacrificar uma das muitas produções do operoso escritor?

Bernardim Ribeiro é um dos astros fulgurantes da rútila constelação que brilha, intensa e perduravelmente, no ceu de Portugal. Já conta alguns séculos, e ainda hoje nos deslumbra o seu fulgor...

Após a local produzida pelo snr. dr. Alfredo da Cunha no seu Diario de Noticias, dando conta dos nossos trabalhos de investigação, que punham termo á lenda de Crisfal, tivemos a ventura de ver que o snr. José Pereira Sampaio (Bruno) havia chegado a conclusão idêntica á nossa, como foi registado n'um brilhante artigo de João Grave no Diario da Tarde, do Porto, confirmado inteiramente por uma carta de Bruno, reproduzida no jornal citado, em que o prestigioso publicista, com a reconhecida autoridade do seu nome, que nada deve ao reclamo, afirmava de maneira absoluta que estavamos com a verdade; que o trovador Cristovam Falcão era simples produto de uma lenda, que o criptónimo Crisfal pertencia a Bernardim Ribeiro.

Do artigo do nosso camarada João Grave, e [8] da carta do ilustre escritor snr. José Sampaio, não faremos citações n'esta altura. Ambos os preciosos documentos se encontram integralmente exarados no nosso livro Bernardim Ribeiro. Não os desconhecem, por certo, aqueles que nos dão a honra da leitura d'este trabalho.

Como recebeu o snr. dr. Theóphilo Braga essas comunicações do Diario de Noticias, de Lisboa, e do Diario da Tarde, do Porto?

―Passando a José Pereira Sampaio (Bruno), e a nós outros, um diploma de ignorantes!

Em 29 de maio, um amigo salientou-nos no jornal A Epoca a secção que o escritor snr. Silva Pinto tinha a seu cargo, e que n'essa data estampava, reproduzida do Diario da Tarde do Porto, a seguinte carta do snr. dr. Theóphilo Braga:

«Meu caro João Grave:―Encantou-me o favor da sua carta, communicando-me o problema litterario que preoccupa o nosso velho amigo e luminoso critico José Sampaio sobre a apochryficidade do auctor do «Crisfal», e que annuncia o primoroso litterato Delfim Guimarães. É sempre boa a vindicação d'uma verdade em qualquer campo: no campo litterario e artistico, isso tem o relevo d'uma conquista, d'um triumpho.

Ninguem mais desejaria que fossem possiveis, isto é realidade demonstrada, as descobertas de Sampaio (Bruno) ou de Delfim Guimarães, sobre a identidade de Christovam Falcão em Bernardim Ribeiro. Isso, porém, não passa d'uma miragem, por falta de conhecimento dos existentes recursos historicos[1].

Diogo do Couto falla em Christovam Falcão como celebrado auctor do «Crisfal», quando narra factos praticados por seu irmão Damião de Sousa. Ora, Diogo do Couto, contemporaneo d'este na India, inventava-lhe um irmão? E tendo sido impresso o «Crisfal» sem nome  d'auctor, (no pliego-suelto da Bibliotheca Nacional de Lisboa) dava-o como auctor d'essa celebrada écloga a capricho seu? O Padre Antonio Cordeiro, na «Historia Insulana», (resumo das «Saudades da terra», do dr. Gaspar Fructuoso, amigo de Camões) tambem faz as mesmas referencias ao poeta Christovam Falcão. E a edição de Ferrara, de 1554, e a de Colonia, de 1559, inscrevendo o seu nome? E Frei Bernardo de Brito, fazendo a «Silva de Lisardo», ou segunda parte do «Crisfal», falla nas serras de Lor-vam, onde esteve D. Maria Brandão, a namorada d'este poeta do «Crisfal».

[9]
Nada d'isto leva a admittir a hypothese. No emtanto, que tragam a lume os seus resultados. A vantagem é de nós todos.

Com um abraço do seu, etc.

Theophilo Braga


Para o professor do Curso Superior de Letras, a conclusão a que, tanto Bruno como nós, haviamos chegado, não passava d'uma miragem, por falta de conhecimento dos existentes recursos historicos, e esta sentença autoritária vinha a público quando o snr. dr. Theóphilo Braga ignorava em absoluto quaes os argumentos com que nós e o insigne publicista nosso conterráneo procurariamos fazer vingar nossas teses.

Magoou-nos a impertinência, confessamos, e não resistimos a manifestar publicamente a impressão em nós produzida pela prosa do snr. dr. Theóphilo Braga, dirigindo n'esse mesmo dia a seguinte carta a João Grave, que este distinto jornalista fez inserir no numero de 1 de junho do Diario da Tarde:

«Meu prezado camarada João Grave:―Acabo de ler, reproduzida por Silva Pinto na «Epoca», a carta que o snr. dr. Theóphilo Braga dirigiu ao meu caro João Grave a propósito do trabalho que preparo, em que me proponho demonstrar que «Crisfal» foi simplesmente um anagrama cabalístico de Bernardim Ribeiro, pertencendo por conseguinte a este lírico as poesias que uma lenda fez atribuir a Cristovam Falcão.

[10]
O nosso bom amigo e erudito escritor José Pereira Sampaio―Bruno―, como se viu da interessante carta que estampou no «Diario da Tarde», como complemento ao artigo que o meu caro João Grave publicou sobre o assunto, chegara a conclusões eguaes, e para mim foi extremamente grato que o nome prestigioso de Bruno viesse valorizar a minha descoberta com a grande autoridade do seu concurso.

Ao ilustre professor, snr. dr. Theóphilo Braga, afigura-se isto uma «miragem, por falta de conhecimento dos existentes recursos historicos», que cita, desde Diogo do Couto a frei Bernardo de Brito.

Peço-lhe, pois, meu caro João Grave, a fineza de dizer no seu jornal que conheço perfeitamente os recursos históricos a que alude o incansavel historiador da Litteratura Portugueza, como não podia deixar de conhecer pela leitura das edições do «Bernardim Ribeiro e o Bucolismo» do snr. dr. T. Braga.

Que Bruno não ignora nenhum d'esses recursos, estou convicto, que, de resto, nem o distinto escritor snr. dr. Theóphilo Braga póde ter dúvidas a tal respeito, porque isso seria fazer ofensa ao justificado nome literário de José Sampaio.

Para fechar, devo ainda dizer-lhe, meu bom amigo, que de modo nenhum eu vou sustentar que não existiram vários cavalheiros com o nome de Cristovam Falcão. Se estes não tivessem existido não tomaria vulto até aos nossos dias a lenda do «Crisfal»!

Não o enfado mais.

Creia-me, com verdadeira estima,
seu amigo, adm.dor e obg.do
S/C. Lisboa, 29-maio/90.

Delfim Guimarães


A Bruno tambem não passou despercebido o amavel diploma do professor do Curso Superior de Letras, e que o ilustre escritor se sentiu melindrado prova-o suficientemente a carta que dirigiu a João Grave, e que, confiados na benevolência do sr. José Pereira Sampaio, vamos [11] trasladar das  colunas do jornal A Epoca, que a reproduziu do Diario da Tarde:

«Meu caro João Grave:―Novamente o venho importunar, pois entendo que, perante a carta, aliás tão bondosa e honrosa para mim, do dr. Theophilo Braga, hontem inserta no seu jornal, me cumpre consignar em publico, ainda uma vez, que após o apparecimento do livro de Delfim Guimarães, defendendo a propozição de que Christovam Falcão não é mais do que Bernardim Ribeiro, eu publicarei o meu, já por V. na sua folha duas vezes amavelmente annunciado, e onde, entre outros, sustentarei egualmente o mesmo ponto, pensando que refutarei ahi cabalmente as asserções, na sua carta de hontem no «Diario da Tarde», pelo nosso doutissimo confrade e illustre publicista produzidas, mostrando então, com todo o respeito devido a tão indefesso e insigne trabalhador, que a minha hypothese (e de Delfim Guimarães) não é tal uma miragem e que, pelo contrario, o ensino corrente no assumpto é que é inteiramente phantastico e chimerico.

A V., prezado collega, reitero os protestos do meu agradecimento.

Todo seu
Porto, 27 de Maio de 1908.

José Pereira Sampaio (Bruno)


O snr. dr. Theóphilo Braga achou que era prudente não voltar á estacada, e assim deixou passar em julgado a nossa carta e aquela em que o snr. José Sampaio, por uma fórma categórica, visando directamente as lições ministradas pelo professor de literatura, declarava que o ensino corrente sobre Cristovam Falcão era inteiramente phantastico e chimerico.

Na elaboração do livro: Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal) obedecemos ao propósito de não converter o nosso trabalho n'uma diatribe, e procuramos suavizar quanto possivel a situação em que eramos forçados a colocar o snr. [12] dr. Theóphilo Braga, em obediência á verdade, e não porque nos animasse qualquer desejo de ser desagradaveis ao infatigavel vulgarizador. E, procedendo assim, entendiamos cumprir um dever, que tinha sobeja justificação nos cabelos brancos do professor do Curso Superior de Letras, cuja primeira edição do seu Bernardim Ribeiro coincidiu com o ano do nosso nascimento. Não esquecemos nunca que fomos educados no respeito devido á velhice.

No trabalho da revisão das provas do nosso estudo, em que fomos auxiliados pela prestante amizade de Henrique Marques, mais de uma vez modificámos referências feitas ao professor que contraditavamos, e sempre da melhor vontade substituiamos um adjectivo, suavizavamos a saliência de um erro do Mestre, desde que o nosso amigo Henrique Marques, com o seu apreciavel critério, nos fazia notar que uma palavra, uma frase nossa, poderia ser tomada como um desprimor para com o snr. dr. Theóphilo Braga.

Queriamos fazer vingar uma obra de justiça; não era nosso intento agravar quem quer que fosse.

E que não fomos descortêses, nem violentos, nem injustos, para com o professor que contraditavamos, prova-o o testemunho insuspeito do eminente publicista snr. José Caldas, que nos honrou com uma carta penhorantíssima, de que reproduziremos neste lugar algumas linhas:

«A delicadeza das suas referencias, com relação aos auctôres cujas conclusões não acceita ou impugna, é verdadeiramente modelar.»

Se houvessemos sido menos cortêses para [13] com o snr. dr. Theóphilo Braga, s. ex.a não se julgaria, com certeza, no dever de agradecer-nos a oferta do exemplar do nosso trabalho que entendemos enviar lhe. E o professor do Curso Superior de Letras escreveu-nos a agradecer o livro, embora na sua carta transpareça o despeito que lhe produziu o nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro, em que desvendamos vários erros contidos em volumes da Historia da Litteratura Portugueza.

Registâmos aqui essa carta do snr. dr. Theóphilo Braga, que não deixa de constituir um documento interessante para aqueles que seguirem com atenção a marcha dos acontecimentos provocados pela pendência literária em que estamos envolvidos.

É, textualmente, como segue:

«Lisboa, 25 de Novembro de 1908

...sr. Delfim Guimarães
e meu presadissimo amigo

[14]
Muito me penhora a honrosa offerta do seu recente trabalho, em que apresenta o seu processo para a identificação do poeta Bernardim Ribeiro com o Crisfal ou Christovam Falcão. A ninguem interessaria tanto o conhecimento d'este problema, como a mim, que esbocei uma biographia de Christovam Falcão com elementos historicos (documentos authenticos) comprovando dados genealogicos. Tive de ler immediatamente o seu livro, para vêr que materiaes traria para o aperfeiçoamento do meu trabalho. Mesmo no prologo fez-me V. a justiça de que eu aproveitaria tudo quanto se prestasse a futuras emendas. Desde as noticias genealogicas trazidas por Braancamp Freire sobre D. Maria Brandão, que Christovam Falcão amou, sendo ambos muito creanças, via-me forçado a tomar o nascimento d'elle no fim do primeiro quartel do seculo XVI. Isto me impossibilitava de continuar a admittir as relações pessoaes de Christovam Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e dementado em confidencias de amor com um rapaz no viço da mocidade; e por tanto as Eclogas em que elle figurava interpretativamente tinham de ser lidas a outra luz. V., acabando de fazer a destrinça entre o Poeta e seu primo mais antigo, deu-me elementos para uma melhor interpretação das Eclogas de Bernardim, (eliminadas as relações com Christovam Falcão), e mostrando como realmente as poesias d'aquelle, como mestre, influiram no mais moço, que como novel chega a fazer centões e intercalações de versos de Bernardim Ribeiro. Ha uma affirmativa historica, de Diogo do Couto, na sua Decada VIII, que, fallando de Damião de Sousa Falcão, accrescenta como reforço historico: «irmão de Christovam Falcão, aquelle que fez aquellas cantigas nomeadas do Crisfal...» E tambem no seculo XVI Fructuoso (resumido pelo P.e Antonio Cordeiro na Historia insulana) diz de Christovam Falcão: «parente do Barão velho e do famoso poeta Christovam Falcão, que fez a celebre Ecloga Crisfal das primeiras syllabas do seu nome...» Tambem nas edições de Ferrara e Colonia, feitas por curiosos sem criterio litterario se repete a attribuição «que dizem ser de Christovam Falcam, ho que parece alludir o nome da mesma Ecloga». Não se podem refutar por negativa estes testemunhos de homens de letras do seculo XVI, e que se reflectiram nos genealogistas. A Ecloga do Crisfal não podia ser publicada pelo seu auctor, nem pelo seu consentimento porque era uma inconfidencia de antigas relações amorosas com uma senhora que estava casada. A edição sem data, de Lisboa, só podia ser feita por 1542, quando Christovam Falcão estava em Roma; e quando Camões foi para Ceuta em 1547 na carta que d'ali escreveu emprega muitos versos do Crisfal, que então, andava no gosto. Na edição de Lisboa vem duas estrophes supprimidas no texto de Ferrara e Colonia, por que continham uma inconfidencia. Isto leva a explicar como Christovam Falcão tentaria apagar a paternidade da Ecloga fundamentando-se-lhe a imputação com o anagramma das primeiras syllabas do nome. Os logares communs a Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão provam mais a favor da imitação de um discipulo, do que á fusão dos dois poetas, repetindo-se o mestre na decadencia. Emfim ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem: o de Joanna e Fauno, Aonia e Bimnarder, e o de Maria e Crisfal. São duas almas, sentindo em situações differentes. Através de todo o hypercriticismo o livro sobre Bernardim Ribeiro revela um trabalhador fervoroso, que me veio revelar a existencia de um exemplar da edição de Ferrara, no Porto, e que aqui descobriu o texto precioso da Ecloga Alexo assignada por Sá de Miranda. Felicitando-o pelo seu importante estudo, sou
[15]

admirador obr.mo e amigo
Theophilo Braga»


Começa a carta do snr. dr. Theóphilo Braga por um rebuçado de ovos: o tratamento de «prezadissimo amigo», que não tinha qualquer justificação... Isto é, tinha uma justificação única, qual era a de nos adoçar a bôca, para engulirmos sem relutância aquela amargosa pílula com que fecha a epístola de s. ex.a, quando, com generosa magnanimidade, confessa que o nosso livro revelou um trabalhador fervoroso, que ao professor do Curso Superior de Letras foi revelar a existencia de um exemplar da edição de Ferrara, no Porto, e que em Lisboa descobriu o texto precioso da ecloga Alexo assignada por Sá de Miranda.

E, graças a estas revelações-revelativas, a que não ligavamos importância de maior, o historiador da Litteratura Portugueza felicitava-nos pelo nosso importante estudo, que, volvidas algumas semanas, havia de classificar de fruto de processos á tôa!

Na devida altura, comentaremos largamente a carta substanciosa do snr. dr. Theóphilo Braga.

Por agora, continuemos na catalogação das peças d'este processo, para que os leitores julguem da justiça que nos cabe, e avaliem da sinceridade, da correcção, e dos processos do professor intangivel.

[16] No jornal O Mundo, de 3 de dezembro de 1908, na local consagrada á sessão da Academia das Sciencias de Portugal realizada no dia 2, vimos que o snr. dr. Theóphilo Braga fizera uma comunicação, que outra cousa não era senão um desmentido formal e gratuito ás conclusões do nosso livro,―mas sem a mais leve citação ao nosso obscuro nome, sem a menor referência ao nosso desluzido trabalho, embora aproveitando-lhe os subsídios. Comprehende-se: o ilustre académico não desejava contribuir de modo nenhum para o reclamo que a imprensa estava dispensando ao volume sobre o Poeta Crisfal.

Transcrevemos do Mundo o periodo referente a tal comunicação... scientífica:

«...finalmente, trata de Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão, mostrando como a vida amorosa d'este oscilla entre 1525 e 1526, sendo n'aquella data moço fidalgo, tendo pelo menos 12 annos, ao passo que aquelle era já edoso; evidencia como na Ecloga transparecem diversas situações da vida de Christovam Falcão, e termina por invocar as opiniões de Diogo Couto, Gaspar Fructuoso e outros que comprovam a existencia das duas individualidades que apesar de similhantes n'algumas situações da vida, não podem jàmais confundir-se».

Ante este procedimento do nosso prezadissimo amigo, não pudemos ficar silenciosos, e, como um desforço legítimo, inadiavel, apelamos para o snr. dr. Brito Camacho, pedindo-lhe se dignasse publicar nas colunas da Lucta a seguinte carta, que o ilustre jornalista fez inserir no numero de 4 de dezembro do seu diário:

«Ex.mo Snr. Dr. Brito Camacho,
meu prezado amigo:

[17]
Pelos extratos, publicados em alguns jornaes de hoje, do que se passou na sessão de hontem da Academia de Sciencias de Portugal, vi que o snr. dr. Theóphilo Braga disse o que quer que fosse, procurando refutar o meu recente trabalho sobre Bernardim Ribeiro, e insistindo na lenda do poeta Cristovam Falcão de Sousa.

Não me admira que o original autor da «Historia da Litteratura Portugueza» persista n'um erro crasso, só para não se confessar vencido, porque já o caso engraçadíssimo dos cantos de ledino era precedente bastante para se ajuizar que o afamado professor do Curso Superior de Letras prefere manter um absurdo a ter de reconhecer publicamente que errou. Está no seu direito, e ninguem lh'o contesta.

Parecia-me, porem, que, publicado o meu estudo sobre Bernardim Ribeiro, em que não torci a meu bel-*prazer a verdade, nem falsifiquei documentos, o snr. dr. Theóphilo Braga tinha o dever moral de, pela imprensa ou em livro, dizer da sua justiça, antes de ir para o seio de uma agremiação, a que eu não pertenço, impor um desmentido formal e dogmatico, ao mesmo tempo que gratuito, ao meu trabalho.

E tanto mais estranhavel se me afigura o procedimento do snr. dr. Braga, contestando á porta fechada a minha tese, quanto é certo que s. ex.a não desconhece que o insigne publicista snr. José Pereira Sampaio (Bruno) prepara um livro sobre o mesmo assunto do meu.

Se o afamado professor do Curso Superior de Letras está de boa fé, quem lhe assegura que os argumentos de Bruno não conseguirão convencê-lo, já que os meus, conforme de resto eu esperava, tal não conseguiram?

É tempo de pôr de parte o magister dixit, porque, felizmente, os processos crìticos dos Farias e Bernardos de Brito são coisas que passaram á historia, e que não se ressuscitam já facilmente.

Muito especialmente me obsequeia o meu bom amigo dando publicidade na nossa Lucta a esta minha carta, que representa o legítimo desabafo de um trabalhador que se preza de ser honesto, e que como tal tem jus a ser considerado.

Mais uma vez agradecido o que se confessa, por estima e dever,

De V. Ex.a

amigo, admirador e obrigado
S/C, Lisboa, 3-12-908.
Delfim Guimarães


[18] Com o espírito de rectidão que todos, amigos e adversários, são concordes em reconhecer ao snr. dr. Brito Camacho, o brilhante jornalista deu acolhimento benévolo á nossa carta, acrescentando-lhe as seguintes linhas de saudação ao professor do Curso Superior de Letras:

«O nosso ilustre correligionario dr. Theóphilo Braga tem as columnas d'este jornal ás suas ordens para dizer da sua justiça, como quizer. Trata-se d'uma questão de facto em historia literária, e não d'uma birra entre dois homens. Muito prazer teremos em que seja o nosso jornal o campo em que se dirima o pleito.»

Não correspondeu o snr. dr. Theophilo Braga á gentileza do director da Lucta; e até para comnosco estamos persuadidos de que, desde o momento em que s. ex.a viu a nossa carta irreverente no jornal de que Brito Camacho é a alma, o pontífice da Litteratura Portugueza excomungou o intemerato jornalista. Que o dr. Camacho nos perdôe a excomunhão que, involuntariamente, lhe acarretamos!

Guardou silêncio o snr. dr. Theóphilo Braga durante semanas, mas não esteve inactivo, ao contrário do que muitos poderiam supor. Com todo o engenho e arte, s. ex.a consagrou-se ao fabrico de uma peça, que não podemos classificar de literária, porque é a negação de todos os processos literários dignos de este nome, mas a que poderá caber a designação de produto de arte... culinária. Como pastelão, faria honra a um cozinheiro, mas cremos bem que o snr. dr. Theóphilo Braga deseja passar á posteridade como um discípulo fervoroso de Augusto Comte, e não como aprendiz ilustre da sciência de Vatel.

[19] A redacção do jornal O Dia, seguindo a praxe dos anos anteriores, honrou o snr. dr. Theóphilo Braga pedindo lhe um artigo sobre o movimento literário português em 1908, para o numero de 31 de dezembro d'esse ano. Como nunca, recebeu o snr. dr. Theóphilo Braga jubilosamente o amavel convite. Tinha ensejo para impingir... o pastelão. Era o momento oportuno para respostar á nossa carta publicada na Lucta, sem nos dar a honra de deixar sair dos bicos da pena aprimorada a confissão de que havia lido o nosso protesto. Podiamos, porventura, esperar outro procedimento por parte do snr. dr. Theóphilo Braga? Não, evidentemente. Pois não haviamos nós,―cúmulo das audácias!―ousado protestar contra a comunicação do presidente da Academia de Sciencias de Portugal?!

Reproduzimos do Dia de 31 de dezembro do ano findo a parte do artigo do snr. Theóphilo Braga que diz respeito á questão literária suscitada pelo nosso livro:

«...No recente fasciculo (do Archivo historico português) ficou publicada uma interessantissima monographia sobre a antiga Feitoria de Flandres, um dos mais necessarios capitulos da nossa historia financeira e administrativa; o sr. Braancamp Freire intitula-o Maria Brandoa a do Crisfal, por que o pae d'esta dama, que inspirou o amor e a Ecloga de Christovão Falcão, foi o pae d'ella, João Brandão Sanches, segundo encontrara no nobiliario de Diogo Gomes de Figueiredo.

[20]
Em dois nobiliarios da bibliotheca da Ajuda tambem se acha esta mesma inscrição: Maria Brandoa a do Crisfal; e nos livros dos linhagistas Manso de Lima e Rangel de Macedo, da Bibliotheca Nacional, vem o mesmo schema genealogico, vendo-se toda a parentella da inspiradora de Crisfal no titulo dos Brandões Sanches, confundidos por vezes com os Brandões do Porto, com os de Coimbra e com os de Elvas. O sr. Anselmo Braancamp Freire, escreve em uma nota: «Sei que se trata de provar, que a Ecloga de Crisfal não foi escripta por Christovam Falcão, mas por Bernardim Ribeiro, e que por tanto a heroina não é Maria Brandão, mas sim a mesma do romance Menina e Moça d'aquelle auctor.» E accrescenta que o sr. Delfim Guimarães empenhado na interessante averiguação o consultara, communicando-lhe as bases em que fundava a sua argumentação, as quaes não conseguiram demovel-o da rotina.

Quasi ao mesmo tempo, o sr. Delfim Guimarães publicava o seu livro Bernardim Ribeiroo Poeta Crisfal, em que resume o já sabido da biographia do auctor da Menina e Moça, forçando interpretações de versos a significarem os factos que imagina. Como lhe nasceu no espirito a ideia de fazer esta descoberta? Pela impressão que lhe causára a leitura dos versos de Bernardim Ribeiro e os de Christovam Falcão,―«dois poetas de temperamento semelhante, com eguaes influencias e educações litterarias, com eguaes episodios nos seus infortunados amores, e havendo entre ambos versos absolutamente eguaes.» D'aqui o identificar os dois poetas em um unico; como conseguil-o? Considerou a individualidade poetica de Christovão Falcão como uma lenda estupida formada pelos genealogistas, e formou o nome de Crisfal indo buscar á tôa as palavras Crisma falsa, tirando-lhes as syllabas iniciaes para designarem a seu talante Bernardim Ribeiro. «Fez-se então uma grande luz no nosso espirito. Não se tratava de dois poetas muito parecidos, de um creador e de um imitador. Bernardim Ribeiro e Crisfal eram um e mesmo poeta. O trovador Christovam Falcão era o producto de uma lenda nascida da interpretação dada pelo vulgo (![2]) ao anagrama Crisfal.» (Op. cit., p. 10). «Alcançada a convicção de que Crisfal era um anagramma de Bernardim Ribeiro, e norteados pelo conhecimento de que nas suas producções o poeta mudava constantemente os seus nomes pastoris, com pequeno trabalho de raciocinio não nos foi difficil deduzir a constituição do cryptogramma, que era formado pelas primeiras syllabas das palavras Crisma e Falso

[21]
E depois d'este processo que, na opinião do sr. Gonçalves Vianna―honra a erudição portugueza,―ataca as fontes genealogicas d'onde Diogo do Couto e Gaspar Fructuoso acceitaram «como ouro de lei o peschesbeque de uma lenda estupida tecida pelo vulgo ignorante, e posta a correr mundo graças á inepcia dos editores dos escriptos legados por esse grande e infortunado poeta que foi Bernardim Ribeiro!» (Ib. p. 11.) E mais adiante, volta a repetir: «A uma lenda estupida deveu esse rebento inglorio de John Falconet a celebridade que durante seculos usufruiu, em prejuizo do renome litterario do verdadeiro Crisfal, o doce, o inimitavel e inegualado Bernardim Ribeiro, etc.» (p. 185.) Mas, como se póde chamar estupida a lenda genealogica se os nomes contidos na Ecloga de Crisfal condizem com os seus parentes taes como o de Pantaleão Dias de Landim seu avô, e a Joanna, que lhe denuncia o casamento clandestino, uma prima, como o notou o sr. Jordão de Freitas?

Os manuscriptos conhecidos de Bernardim Ribeiro andavam ligados com os de Christovam Falcão, como se vê pela descripção do n.º 180 da Livraria do Conde de Vimieiro: Obras em prosa e verso de Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão; tambem o Arcediago do Barreiro, dr. Jeronymo José Rodrigues, examinou no Porto um manuscripto analogo ao das edições de 1559, em que vinham a Menina e Moça, duas eclogas de Bernardim Ribeiro―«e até se acham no fim algumas poesias de Christovão Falcão, do que se faz menção no mesmo logar de Nicoláo Antonio.» (Innocencio, Dic. Bibliog.)

Para que chamar ineptos aos editores de Ferrara de 1554 e de Colonia de 1559, por terem reproduzido esses textos manuscriptos como os encontraram? Quando o sr. Delfim Guimarães trabalhava para destruir uma miragem de seculos, foi communicar ao sr. dr. Alfredo da Cunha «a descoberta que tinha feito e que, sem falsa modestia, reputava de alta importancia para a historia das lettras portuguezas.» Era uma Noticia litteraria de sensação, o dr. Alfredo da Cunha deu alentos á grande descoberta de que a figura do poeta Christovam Falcão «pertence exclusivamente ao dominio da lenda, por isso que tal poeta só existiu na imaginação d'aquelles que viram n'um anagrama cabalistico de Bernardim Ribeiro a encarnação de outra individualidade.»

[22]
No noticiario de outro jornal sairam affirmações absolutas, proclamando a sensacional descoberta, com uma sinceridade inconsciente que affasta de todo a ideia de ironia. A verdadeira descoberta pertence ao sr. Braancamp Freire determinando a epoca em que esteve em Flandres João Brandão Sanches, e quando elle morreu, dando nos assim a data em que existiram os amores de sua filha unica D. Maria Brandão, a do Crisfal, que plausivelmente se fixam em 1530. O documento de 1527 referindo-se a Christovam Falcão, com a tença de môço fidalgo, leva a deduzir que nascera em 1512. Ha portanto a eliminar todas as relações pessoaes entre Christovam Falcão e Bernardim Ribeiro, como julgamos nos nossos estudos, corrigindo a interpretação da Ecloga I e III de Bernardim. Os logares communs a Christovam Falcão e Bernardim Ribeiro provam a distancia da edade que levou o mais novo a imitar aquelle que já era admirado, cujos versos, Camões, na sua Carta de Africa, intercalava na sua prosa.»

Esta produção peregrina do snr. Dr. Theóphilo Braga veio publicada no jornal O Dia com a assinatura do professor do Curso Superior de Letras em fac-simile, e ainda bem, para que não se pudesse ajuizar tratar-se de uma brincadeira de mau gosto de quem quer que fosse.

Quando lemos um tal documento, a primeira impressão que se apoderou de nós foi a de revolta; mas logo um outro sentimento veio substituir esta―um sentimento muito fundo de tristeza, de sincera mágoa...

E, sem prazer, pudemos constatar que a impressão que o snr. Dr. Theóphilo Braga deixára nos leitores inteligentes do seu tendencioso Movimento Litterario era egual á nossa,―uma sincera mágoa.

Mas no artigo do eminente professor eramos tam directamente alvejados, e o nosso trabalho depreciado com tal rancor e má fé, que não podiamos ficar silenciosos.

[23] No jornal a Lucta, do dia 3 de Janeiro d'este ano, como protesto, publicamos o artigo que vamos reproduzir:


Os processos... scientíficos
do snr. dr. Theóphilo Braga


Não se dignou o sr. dr. Theóphilo Braga aceitar o oferecimento que o distinto jornalista que dirige A Lucta lhe fez em 4 de dezembro ultimo: pondo á disposição de s. ex.a as colunas deste diário, para que o professor do Curso Superior de Letras dissesse da sua justiça em face da carta que tive ensejo de dirigir ao meu bom amigo snr. dr. Brito Camacho, estampada n'este jornal, motivada pelo procedimento estranhavel seguido para comigo pelo snr. dr. Theóphilo Braga.

Passaram-se dias, passaram-se semanas, e, quando todos julgavam que o professor do Curso Superior de Letras adoptara de Conrado o prudente silêncio, eis que o sr. dr. Theóphilo Braga, a pretexto de pôr os leitores do Dia ao corrente do movimento literário no ano findo, com ares dogmáticos e desdenhosos, enche perto d'uma coluna d'aquele jornal com um aranzel cheio de lugares comuns, procurando refutar as conclusões do meu recente estudo sobre Bernardim Ribeiro.

Não me surpreendeu o rancor que transparece no artigo do snr. dr. Theóphilo Braga. Imagino quanto deve ser doloroso para o professor do Curso Superior de Letras o ter de refundir mais uma vez dois dos volumes da sua chamada edição integral da Historia da Litteratura Portugueza: «Sá de Miranda» e «Bernardim Ribeiro». Isto, junto ao conhecimento que possuo da maneira de ser do snr. dr. Theóphilo Braga, é para mim explicação bastante do seu ressentimento, que a prosa do infatigavel «carreador de materiaes» não consegue disfarçar.

[24]
A todos os pontos tocados no aranzel do snr. dr. Theóphilo Braga, darei resposta em livro, e d'essa tarefa procurarei desempenhar-me em curto praso, com a largueza e documentação que o assunto requer, o que não é compativel com o espaço que a trabalhos d'esta espécie pode dispensar um jornal da índole da Lucta.

Por hoje, e certo da amabilidade com que me distingue o meu prezado amigo snr. dr. Brito Camacho, desejo apenas salientar, muito ao de leve, algumas inexactidões flagrantes do artigo Movimento litterario, do snr. dr. Theóphilo Braga, que bem demonstram a correcção dos processos... scientíficos do professor do Curso Superior de Letras.

Referindo-se ao ultimo tomo do Archivo Historico, a revista dirigida pela superior competência do snr. Braamcamp Freire, em que este escritor encetou a publicação da sua monografia sobre Maria Brandão, diz o snr. dr. Th. Braga que a monografia «ficou publicada», procurando assim dar a entender que o estudo do snr. Braamcamp Freire está ultimado, quando é facto que ainda lhe falta o capítulo em especial referente a Maria Brandão, destinado por certo a ser o mais curioso, pela luz que ha de fazer jorrar sobre a figura da suposta amada do poeta Crisfal.

Mas ao snr. dr. Theóphilo Braga conveio torcer a verdade, para que com maior presteza os leitores ingénuos acreditassem nos seguintes períodos ardilosamente engendrados:

«O sr. Anselmo Braancamp Freire escreve em nota: «Sei que se trata de provar que a Ecloga de Crisfal não foi escripta por Christovam Falcão, mas por Bernardim Ribeiro, e que por tanto a heroina não é Maria Brandão, mas sim a mesma do romance Menina e Moça d'aquelle auctor». E accrescenta, que o sr. Delfim Guimarães, empenhado na interessante averiguação, o consultara, communicando lhe as bases em que fundava a sua argumentação, as quaes não conseguiram demovel-o da rotina.»

[25]
Ao contrário da afirmação do snr. dr. Theóphilo, o snr. Braamcamp Freire não declara tal que eu o consultara sobre a averiguação que fiz, como não escreveu na nota citada pelo snr. dr. Theóphilo Braga aquilo que s. ex.a gratuitamente lhe atribue.

Reproduzo textualmente o período que o snr. dr. Theóphilo Braga interpretou a seu bel-prazer, para melhor juizo dos que me lêem:

«O sr. Delfim de Brito Guimarães, que anda empenhado na interessante averiguação, teve a bondade de me comunicar as principaes bases que servirão de alicerce á sua argumentação: entretanto, emquanto não apparecerem os considerandos e a sentença sobre a prova nelles feita não transitar sem apelação em julgado, não me compete intervir no pleito e continuarei com a rotina.»

Como se vê, o snr. Braamcamp Freire não escreveu que eu lhe comunicara as bases em que fundava a minha argumentação, mas sim unicamente as principaes bases, e o consciencioso investigador não declarava que taes bases não conseguiram demovê-lo da rotina, mas sim que «em quanto não aparecessem os considerandos e a sentença sobre a prova nelles feita não transitasse sem apelação em julgado, não lhe competia intervir no pleito e continuava com a rotina».

Para que torceu, a seu talante o snr. dr. Theóphilo Braga a nota cheia de correcção do ilustre escritor?―Para se servir, como de um escudo protector e cómodo, do nome prestigioso de Braamcamp Freire, procurando, com tal engenho e arte, fazer acreditar aos papalvos desprevenidos que tinha a apoiar o seu desmentido formal ás conclusões do meu trabalho a individualidade, a todos os títulos eminente, do ilustre director do Archivo Historico.

[26]
Ora a nota invocada pelo snr. dr. Theóphilo Braga encontra-se logo na 2.ª pagina do estudo do snr. Braamcamp, e foi produzida quando o erudito escritor traçou os primeiros períodos do seu trabalho, conhecendo apenas as «bases principaes» com que elaborei o meu livro Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal).

Depois da leitura do meu modesto estudo, o snr. Braamcamp Freire teve a gentileza de me comunicar que os meus argumentos haviam logrado convencê-lo. E por tal fórma o convenceram que o ilustre escritor logo abandonou a rotina, não carecendo para isso que a sentença sobre a prova feita transitasse em julgado―muito embora isto pese ao snr. dr. Theóphilo Braga, que até viu com desgosto que o abalisado professor snr. Gonçalves Viana, achasse que o meu livro Bernardim Ribeiro fazia honra á erudição portuguêsa.

Mais, o snr. Braamcamp Freire não só me felicitou calorosamente pelo éxito do meu trabalho, que representava a justa reparação devida a um dos maiores poetas da nossa terra, como teve a bondade de enviar-me a prova tipográfica de uma passagem do seu estudo, então no prélo, em que o conceituado escritor confessava publicamente que Maria Brandoa, a lendária amada do Crisfal, passara á historia...

Foi fazer companhia aos cantos de ledino...

Tal passagem se encontra a pag. 402 do ultimo tomo do «Archivo Historico», mas o snr. dr. Theóphilo Braga seguindo os processos... scientíficos que o enaltecem, ocultou-a propositadamente, intencionalmente, aos leitores do seu artigo estampado no Dia.

É como segue:

«...do catalogo porém limitar-me-ei agora a extrair os nomes dos oficiaes da feitoria, reservando-me para aproveitar d'elle, n'outro capitulo, um dado importante para a biographia de Maria Brandôa, já, coitadita! quando este estudo aparecer a publico, apiada de heroina da ecloga Crisfal

[27]
Ás afirmações, em apoio da minha tese, feitas em maio de 1908 no Diario da Tarde, do Porto, pelo insigne publicista snr. José Pereira Sampaio (Bruno), refere-se tambem o snr. dr. Theóphilo Braga da seguinte maneira:

«No noticiario de outro jornal sairam afirmações absolutas, proclamando a sensacional descoberta, com uma sinceridade inconsciente que afasta de todo a idéa de ironia».

O snr dr. Theóphilo Braga, referindo-se, com desdem, á sinceridade inconsciente de Bruno, não nos magôa sómente a nós, que votamos uma grande estima ao ilustre escritor portuense: ofende as Letras Portuguêsas, que teem no snr. José Sampaio uma das suas mais legítimas glórias.

Tristes processos está seguindo o snr. dr. Theóphilo Braga!


Delfim Guimarães


O snr. dr. Brito Camacho, dando hospitalidade nas colunas da Lucta ao nosso artigo, nòvamente pôs o seu jornal á disposição do snr. dr. Theóphilo Braga, para que s. ex.a, querendo, dissesse de sua justiça. O professor do Curso Superior de Letras não aceitou o oferecimento que pela segunda vez lhe era feito.

E, em verdade, que havia o autor do artigo Movimento Litterário de dizer em contestação do libelo documentado que tinhamos produzido? Nenhuma justiça lhe assistia, e por consequência não ousou reclamar. Recolheu-se ao silêncio,―áquele prudentíssimo silêncio que se seguiu á publicação do notavel trabalho do Dr. Sílvio Romero sobre a Patria Portuguêsa.

No artigo que publicamos na Lucta, de 3 de janeiro do ano em curso, tomámos o compromisso [28] de tratar em livro todos os pontos tocados pelo snr. dr. Theóphilo Braga no seu aranzel do Dia, com a largueza e documentação que o assunto exige, em homenagem á memória de Bernardim Ribeiro; pelo dever moral que nos impusemos de contribuir, quanto em nossas mingoadas forças caiba, para que justiça seja feita, embora tardia, a um dos mais belos temperamentos poéticos da nossa terra.

Uma lenda é fácil de forjar, e com facilidade toma corpo e lança raizes, obcecando muitas vezes os mais esclarecidos espíritos.

A nossa Historia Literária está cheia de lendas e embustes, graças aos Farias e Sousa e Bernardos de Brito. Mas a Verdade, superior a todas as lendas, e a todas as reputações de historiadores burlões e de críticos trapaceiros, acaba sempre por triunfar, embora isso leve anos, embora decorram séculos.

Na defeza da causa que prosseguimos, que é nobre e justa, não nos animam quaesquer intuitos de evidenciação, não nos move qualquer mesquinho sentimento de despeito; lutamos pela verdade, procuramos contribuir com o nosso esforço de modestos obreiros das letras para desfazer um erro que a ignorância engendrou, que a rotina não-te-ralesca impôs como um dogma, e que a vaidade irritada e irritante do snr. dr. Theóphilo Braga persiste em sustentar, a torto, que não a direito, impondo-o autocraticamente a quantos vêem no professor do Curso Superior de Letras o pontífice máximo, ditador inviolavel e sagrado da Republica... das letras portuguêsas.



II

O snr. dr. Theóphilo Braga,
descobrindo a verdade, e procurando
enterrá-la


Ao preparar os materiaes para a refundição de seu livro sobre Bernardim Ribeiro, o snr. dr. Theóphilo Braga teve ensejo de reconhecer que a figura do trovador Cristovam Falcão era mero produto de uma lenda, mas não teve a coragem precisa para vir a público declarar que tinha errado ao dar á estampa o seu primeiro volume sobre os poetas bucolistas, em que, seguindo a rotina, dera existência real ao suposto poeta, que já havia classificado de ultimo eco do alaúde provençal, modificado pelo gosto hespanhol de Padron e Stuniga.[3]

E não querendo confessar que errara, como se semelhante facto constituisse desdoiro ou apoucasse de qualquer fórma seus méritos, o autor do livro Bernardim Ribeiro e o Bucolismo procurou, por um processo que não nos atrevemos a chamar genial, enterrar a verdade, sepultando-a sob um pedregulho enorme, para que ali dormisse um sono de séculos, tantos séculos pelo menos como a lenda contava, para que, assim, ninguem pudesse aludir ao erro em [30] que se deixara enredar o professor do Curso Superior de Letras.

Como o snr. dr. Theóphilo Braga procedeu, vão os leitores conhecer, e depois ficarão habilitados a julgar da sinceridade com que o infatigavel escritor impugna o nosso livro sobre o poeta Crisfal.

A pag. 356/7 do seu livro Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, na parte respeitante a Cristovam Falcão, escreveu o snr. dr. Theóphilo Braga:

«O primeiro documento historico que encontramos acerca do poeta, de um modo irrefragavel, é datado de 1517; é uma graça régia motivada talvez pela sympathia que suscitava a sua desgraçada paixão, ou apparentemente pelos serviços de seu pae. Em um alvará ao Almoxarife de Coimbra foi passada ordem para que dê o rendimento d'este anno de 1517 a Christovam Falcão: 97:000 réis. Recebeu-os o seu procurador Mestre Jorge.»

Como se vê da transcrição feita, o autor declarava que o documento invocado referia-se ao suposto poeta de um modo irrefragavel, isto é: «irrecusavelmente, incontestavelmente.» Esse documento dizia respeito, segundo inculcava o snr. dr. Theóphilo Braga, a uma graça régia, mercê de 97$000 réis, concedida ao suposto bardo talvez pela sympathia que suscitava a sua desgraçada paixão, ou apparentemente pelos serviços de seu pae.

Ora fazendo taes afirmativas, autoritária e catedraticamente, o snr. dr. Theóphilo Braga abusava da boa fé dos seus leitores, por isso que s. ex.a muito bem conhecia que estava deturpando a verdade, a seu bel-prazer, que nada d'aquilo que apregoava como autêntico era verdadeiro.

[31] Nem o alvará de 1517 dizia respeito ao suposto poeta, nem semelhante alvará mencionava a verba de 97$000 réis.

Tratava-se de uma tença de 97$734 reis (resultante de dois padrões) que pertencia a Cristovam Falcão, senhor da vila de Pereira, e não ao suposto poeta Cristovam Falcão de Sousa.

Ignorava, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga a existência dos dois padrões constituitivos da referida tença?―Não ignorava. E a prova de que os não desconhecia está nas citações que s. ex.a faz a paginas 331/2 do seu mencionado livro, atribuindo-os a quem eles diziam respeito, isto é a Cristovam Falcão, senhor da vila de Pereira, que nada tinha que ver com o suposto poeta, como o snr. dr. Theóphilo Braga, de resto, muito bem estabelecia.

Mas a existência de uma tença de 97$000 reis, pelas alturas de 1517, a favor de Cristovão Falcão de Sousa, comprovaria de certo modo a data em que o snr. dr. Theóphilo Braga fixou habilidosamente o nascimento do ultimo eco do alaúde, e permitia ao fantasioso escritor justificar tam rasgada mercê régia atribuindo-a á sympathia que suscitava a sua desgraçada paixão.

D'esta maneira, servindo-se de um alvará que não dizia respeito ao suposto poeta, e alterando-lhe caprichosamente a quantia mencionada, o snr. dr. T. Braga creava um recurso histórico graças ao qual os discípulos do professor do Curso Superior de Letras podiam aceitar que pelas alturas do ano da graça de 1517 já existia um afamado poeta com o nome de Cristovão Falcão, tam desventurado em seus amores que el-rei, compadecido, lhe fizera mercê da [32] tença, verdadeiramente principesca, de 97$000 réis! E sucedendo um caso d'estes em nossos dias, ainda ha quem ache estranho que Faria e Sousa e frei Bernardo de Brito improvisassem (é este o termo próprio?) documentos... históricos!

Ao publicarmos o nosso trabalho sobre Bernardim Ribeiro, não salientamos devidamente estes pouco recomendaveis processos do snr. dr. Theóphilo Braga, poupando, com generosidade, o nome do encanecido trabalhador, em respeito aos seus cabelos brancos.

E á nossa manifesta generosidade correspondeu o aclamado professor apodando os nossos processos críticos de:―processos... á tôa!

Que nome conceder a esses processos do snr. dr. Theóphilo Braga?

Mas não ficaram por aqui as habilidades de que se serviu o autor da Historia da Litteratura Portugueza. E chamamos-lhes habilidades, por não encontrarmos á mão um termo mais anodino, mais suave, mais doce, para definir o feito, e não por qualquer propósito agressivo.

Existem na Torre do Tombo cartas autógrafas do suposto autor do Crisfal. A simples publicação d'essas cartas constituiria um golpe decisivo na lenda que atribuia produções de Bernardim Ribeiro a Cristovão Falcão de Sousa, por isso que taes documentos revelam que este, alem de iletrado, não escrevia meia dúzia de linhas sem uma enfiada de asneiras...―«uma acumulação de tolices», no dizer insuspeito de uma ilustre escritora.

Que fez o snr. dr. Theóphilo Braga?

Publicou essas cartas, alterando-lhe, paternalmente, a ortografia e a gramática, e deixando [33] assim transparecer que o autor de taes escritos poderia muito bem ter produzido as poesias bucólicas que lhe atribuiam.

Para que se não ajuízasse que faziamos uma afirmação gratuita ao dizer que o snr. dr. Th. Braga publicara emendada a obra... em prosa de Cristovam Falcão, démos no volume Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal) uma reprodução foto-zincográfica de uma das cartas do suposto poeta, e, não desejando colocar n'uma situação pouco invejavel o professor do Curso Superior de Letras, escrevemos, procurando desculpar o seu procedimento:

«........o copista, a quem o distinto professor encarregou de reproduzir o documento existente na Torre do Tombo, forneceu-lhe uma reprodução com summa deligencia emendada, que o snr. dr. Theóphilo, com a melhor boa fé, estampou no seu livro, e que muito se afasta do original.»[4]

Nem na sua comunicação á Academia das Sciências de Portugal, nem no seu artigo do jornal «O Dia», nem na carta que nos dirigiu, se referiu, embora ao de leve, o snr. dr. T. Braga á carta de Cristovam Falcão de Sousa... Compreende-se. O documento é tam esmagador, que o infatigavel polígrafo foge d'ele como dizem que o diabo foge da cruz.

Mas, embora isso não agrade a s. ex.a, vamos dar aqui a reprodução paleográfica de outra carta de Cristovam Falcão de Sousa, devendo elucidar os leitores que o snr. dr. Theóphilo Braga já deu publicidade a tal documento a pag. 368/70 do seu Bernardim Ribeiro (edição [34] refundida). Mas deu-lhe publicidade: emendando-o...

Como não temos a peito celebrizar o alto engenho e mais partes que concorriam na pessoa do suposto poeta, reproduzimos a carta fielmente, e, para desfazer algum erro de leitura ou qualquer gralha que passe á revisão, juntamos em foto-gravura o seu fac-simile.

Eis a carta:

[Figura: Reproducção foto-zincográfica da carta de Cristovam Falcão de Sousa]

«Sñor. mjnha jrmã dona bracajda faleceo da ujda presemte a dez dias deste mes pasado estando eu nesa corte ẽ serujço de v. a. onde me foy a noua pera [~q] viese prover ẽ algũas cousas da su alma por me ela dejxar por seu testamẽtejro cõ seu marido ejtor de figuejredo. fiquou-lhe hũ só filho e doutro marido [~q] deste não ouve nenhũ e tão Riquo [~q] me dizẽ que foy posta a fazẽda de seu pay quãdo faleceo (que eu não era no Rejno) ẽ doze contos. fez meu pay antes [~q] eu de la partise petição a uosa a. [~q] lhe mãdase ẽtregar seu neto e tirar de poder de seu padrasto. sayo lhe na petição [~q] Requerese ao Juiz dos orfãos da uila donde ho moço está que he borba donde seu padrasto he natural e alquajde mor pelo duque de bragança e que ele prouerja e que não no fazẽdo proverja ẽtão vosa a. a qual deligẽcia eu tenho fejto que Requery ao Juiz [~q] lho tjrase de poder e que fose loguo por [~q] eu tjnha sabjdo [~q] eitor de figueiredo detremjnaua quasar ho moço cõ sua f.a no fim deste mes ẽ que lhe diziã que ho moço [35] faz quatorze anos pera ho matrimonjo ser valioso. mãdou ho Juiz dar ujsta de meu Requerim.to a eitor de figueiredo e njsto e ẽ ele Responder pasaram ojto dias e nestes me fizerão mujtos agrauos alomgãdo me ho tempo e me fizerão perdediça hũa petjção dagrauo na qual agrauaua pera v. a. apresemtandoa eu ẽ audiencja onde foy lida e jsto tudo por ele ser alquajde mor e ser toda a ujla de seus paremtes e criados e por [~q] da li não pasão os agrauos se não pera ho ouujdor do duque onde tão bẽ me deterjão pera ho moço chegar ao termo dos quatorze anos detremjney dejxar a cousa neste termo e fazelo saber a v. a. pera [~q] proueja njsto como lhe parecer serujço de deos e seu que mjlhor proueja [~q] pois tẽ tal fazẽda que v. a. ho quase cõ quẽ ouuer por seu serujço [~q] não [~q] ho orfão seia asy Roubado. no que v. a. deue loguo prouer como pay dos orfãos [~q] he quanto mais [~q] quarega jsto sobre cõcjẽcja de v. a. por hũ alu. que vosa a. pasou a ejtor de figueiredo ao tẽpo [~q] quasou cõ mjnha Jrmã pelo qual tjrou a titorja a meu pay de seu neto por lha dar a ele. ao qual agora ajnda se pega, como se não fose cerada a cousa por morte de mjnha Jrmã. e o [~q] me parece [~q] se deue fazer he pasar v. a. logo alu. por esta quarta [~q] pode serujr de petjção, [~q] polo qual mãde a hũ dos quoReiadores destremoz elvas ou por talegre [~q] qualquer deles va a borba e tjre ho moço de [36] poder de seu padrasto e ẽtregue sua p.a a meu pay seu auô ou a meu jrmão barnabé de sousa [~q] tẽ fazẽda p.a ho mjlhor mãter [~q] biue ẽ portalegre onde ho moço tẽ parte de sua fazẽda e lhe he já dado por tutor desta fazemda e despois do moço tjrado prouer v. a. ẽ quẽ seia seu tutor e seja ouujdo ejtor de figuejredo das Rezomis [~q] diz ter pera [~q] ho moço quase cõ sua f.a mas jsto deuela ser amte v. a. [~q] qua não sey quãto se gardara Justiça e ho aluará pode v. a. mãdar dar a demjão de sousa meu irmão [~q] la amda [~q] ele ho fará vir cõ mujta deligẽcia [~q] eu fiquo qua esperamdo p.a ho Requerer e apresemtar. e lẽbro mais a uosa a. [~q] mãde ao mesmo coReiador que ẽtẽda nas partjlhas e jmbẽtajro [~q] doutra manejra será Roubado ho orfão e asi [~q] o tẽpo aquaba p.a fim deste mes e eu s.or neste trabalho nõ pretendo mais [~q] fazer ho [~q] deuo e tenho dejxado os Requerjm.tos que trago cõ v. a. ẽ mão de fernão daluarez peço a v. a. que nõ perqua por ausente de ser despachado. a quẽ deos a ujda e Real estado acrecẽte. de portalegre sete de novembro. as  Reajs mãos de v. a. bejjo. xpouão falcão de sousa.»[5]

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Ao leitor deixamos a faculdade de comentar a carta primorosa do sarrafaçal engenho que durante alguns séculos gosou da fama de poeta insigne, em prejuizo do nome aureolado de Bernardim Ribeiro.



III

Anotações á carta que nos dirigiu
o snr. dr. Theóphilo Braga


1

«A ninguem interessaria tanto o conhecimento d'este problema, como a mim, que esbocei uma biographia de Christovam Falcão com elementos historicos (documentos authenticos) comprovando dados genealogicos.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Não ha a menor dúvida quanto á primeira parte d'esta afirmação.

Com efeito, o snr. dr. Theóphilo Braga esboçou uma biografia de Cristovam Falcão, e ninguem ousará contestar-lhe o mérito de haver sido o Plutarco do suposto trovador.

Esboçando-lhe a biografia, o abalisado professor de literatura serviu-se de documentos autênticos... mas utilizando alguns que não diziam respeito ao pseudo-poeta, e sim a um outro Cristovam; e interpretando, modificando e adulterando outros documentos ao sabor do seu paladar, ao capricho da sua fantasia.

No capitulo XIX do nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro destrinçamos os documentos históricos que o snr. dr. Theóphilo Braga propositadamente [38] confundiu, e restabelecemos o texto de uma das cartas de Cristovam Falcão de Sousa que o habil professor emendara, com o zelo de Plutarco cioso do bom nome do seu heroe... lendário.

No segundo capítulo d'este livro, ficou tambem fielmente reproduzida outra carta de Cristovam Falcão, que o infatigavel historiador havia corrigido, como se se tratasse de um tema de algum discípulo seu. Mesmo quando se entrega a trabalhos de reconstituição histórica, o snr. dr. Theóphilo Braga não se esquece de que é professor de literatura portuguêsa!

Depois de isto, como ousa o snr. dr. Theóphilo Braga invocar os documentos autênticos de que tam mau uso fez?

2

«Tive de ler immediatamente o seu livro, para ver que materiaes traria para o aperfeiçoamento do meu trabalho.»

Carta do snr. dr.  Th. Braga.


Tem graça, e não ofende!

Se leu imediatamente o nosso livro, não foi para ver que novos subsídios forneciamos para o estudo da história da literatura portuguêsa, mas sim para conhecer quaes os materiaes que lhe facultariamos para o aperfeiçoamento do seu trabalho...

Cabe n'esta altura, a talho de foice, deixar consignada certa passagem de uma palestra que o snr. dr. Theóphilo Braga teve com um dos seus mais inteligentes discípulos a propósito da [39] publicação do nosso livro sobre Bernardim Ribeiro:

«V. compreende... Eu sou como um mestre de obras... na construção de um edificio. Ha vários pedreiros... Vão-me chegando ás mãos diversas pedras... Aproveito aquelas que se me afiguram de feição, geitosas, convenientes para a minha obra, e as outras ponho as de parte, deito-as fóra.»

E a um distinto confrade nas letras, ainda por motivo da publicação do nosso livro, o professor do Curso Superior de Letras teve ensejo de referir-se á nossa obscura pessoa, fazendo o favor de nos reconhecer talento, mas... que os estudos de investigação histórica eram umas teclas muito dificeis, muito complicadas...

O apreciado mestre de obras (segundo a frase de s. ex.a) escusava de ter lido o nosso trabalho. O sub-título do livro, O Poeta Crisfal, demonstrava suficientemente ao snr. dr. Theóphilo Braga que nenhuma pedra de feição poderiamos proporcionar-lhe para o aperfeiçoamento da sua obra, porque o nosso livro lhe atirava a terra com os alicerces em que se firmava o edificio... ou monumento erguido ao falso Crisfal.

Foi um castelo de cartas que um sopro deitou ao chão...

Oh! os estudos de investigação histórica são realmente... umas teclas muito complicadas!

3

«Mesmo no prologo fez-me V. a justiça de que eu aproveitaria tudo quanto se prestasse a futuras emendas.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


[40] Não escrevemos tal no prólogo do nosso livro que o snr. dr. Theóphilo Braga aproveitaria d'ele tudo quanto se prestasse a futuras emendas.

O que nós escrevemos a pag. 24 do nosso estudo sobre Bernardim é o período que segue:

«Embora, em resultado da nossa descoberta, o snr. dr. Theóphilo Braga tenha de refundir mais uma vez os seus trabalhos sobre Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda, estamos plenamente convencidos de que ninguem estimará mais do que o incansavel professor do Curso Superior de Letras a luz derramada sobre a figura do grande poeta bucolista, amigo de Francisco de Sá.»

Nas linhas transcritas, o que havia da nossa parte era um cumprimento de cortesia,―uma gentileza, uma amabilidade, própria de quem, não tendo qualquer agravo do snr. dr. Theóphilo Braga, procurava colocar s. ex.a em bom terreno, oferecendo lhe, por assim dizer, uma ponte, uma táboa de salvação, pela qual, sem quebra de linha, o escritor consagrado pudesse atravessar, reconhecendo, ou fingindo reconhecer, o mau terreno que estava pisando, e abraçando honestamente a verdade evidenciada.

Era um cumprimento, repetimos; não um acto de justiça, que a ele não tinha jus o infátigo escritor. E da mesma natureza, no decurso do nosso trabalho, outras demonstrações de cortesia ficaram assinaladas, prestando homenagem á vida laboriosa do escritor encanecido cujos erros combatiamos.

Mas como as amabilidades se agradecem, e os actos de justiça não são credores de qualquer agradecimento, aprouve ao snr. dr. Th. Braga ver nas nossas palavras um acto de justiça.

[41] Não lhe queremos mal por isso, pode crer o venerado professor.

Cada qual segue os impulsos do seu temperamento.

4

«Desde as noticias genealogicas trazidas por Braancamp Freire sobre D. Maria Brandão, que Cristovam Falcão amou, sendo ambos muito crianças, via-me forçado a tomar o nascimento d'elle no fim do primeiro quartel do seculo XVI.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Quando chegámos a esta altura da preciosa carta do snr. dr. Theóphilo Braga ficamos verdadeiramente surpreendidos, para não dizer boquiabertos!

Lemos e tornamos a ler o período transcrito, pesamos detida e pacientemente cada uma das palavras que o constituem, e, ao cabo, alcançamos o convencimento de que uma tal afirmação constituia uma habilidade, um processo, uma engenhoca,―deixem chamar-lhe assim, embora o termo destôe, por menos académico,―a que o professor de literatura recorria para não confessar ter sido o nosso trabalho que o obrigava a aceitar o nascimento do suposto poeta no fim do primeiro quartel do seculo XVI.

Fôra pelas noticias genealogicas trazidas pelo snr. Braamcamp Freire sobre D. Maria Brandão que o snr. dr. Theóphilo Braga, conforme nos escrevia, se vira forçado a não insistir no nascimento do pseudo Crisfal no ano de 1497, se não antes!

Mas como podia isto ser, se o trabalho do [42] ilustre escritor invocado pelo snr. dr. Theóphilo ainda não fôra dado á estampa?

Teria o professor do Curso Superior de Letras recebido qualquer comunicação sobre o assunto por parte do snr. Anselmo Braamcamp Freire?―Não, não tinha recebido, como o demonstram eloquentemente os seguintes períodos de uma carta que em 5 de dezembro de 1908 nos dirigiu, em resposta a uma nossa, o primoroso director do Archivo Historico:

«Vamos agora á sua pergunta de hoje originada pela carta do dr. Teofilo Braga. Elle não conhece nada do meu trabalho sobre a Maria Brandoa, e faça-me a justiça de crer que, não lho tendo mostrado a si, não o mostraria a mais ninguem. Não lho mostrei a si, porque nas 150 paginas já impressas, de que em breve lhe mandarei um exemplar, nada digo a respeito de Maria Brandoa: trato dos Brandões do Cancioneiro e da Feitoria de Flandres.»

Depois da transcrição d'estas linhas, eloquentes e insuspeitas, do snr. Braamcamp Freire, tornam-se desnecessários de nossa parte quaesquer comentários á afirmação sem base do snr. dr. Theóphilo Braga.

Passemos adeante sobre este caso triste!

5

«Isto nos impossibilitava de continuar a admittir as relações pessoaes de Cristovam Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e dementado em confidencias de amor com um rapaz no viço da mocidade; e por tanto as Eclogas em que elle figurava interpretativamente tinham de ser lidas a outra luz. V. acabando de fazer a destrinça entre o Poeta e seu primo mais antigo, deu-me elementos para uma melhor interpretação das Eclogas de Bernardim, (eliminadas as relações com Cristovam Falcão), e mostrando como realmente as poesias d'aquelle, como mestre, influiram no mais moço, que como novel chega a fazer centões e intercalações de versos de Bernardim Ribeiro.»

[43]
Carta do snr. dr. Th. Braga.


Pelo exposto, entende o snr. dr. Theóphilo Braga que nós lhe demos elementos para uma melhor interpretação das éclogas de Bernardim, o que importa implicitamente a afirmação de que não soubemos interpretá-las, ou que erramos a exegese com que julgavamos ter corrigido as lições ministradas pelo ilustre professor.

Aguardemos, pacientemente, que o snr. dr. Theóphilo Braga refunda mais uma vez o seu livro sobre Bernardim Ribeiro, para então apreciarmos as novas interpretações que o imaginoso historiador se propõe apresentar das éclogas de Bernardim, e ficarmos tambem conhecendo quaes os centões e intercalações de versos de Ribeiro que o novel Falcão introduziu nas suas produções... em prosa, únicas que obrou. Obrou, no sentido de: produziu, claro está.

6

[44]
«Ha uma affirmativa histórica, de Diogo do Couto, na sua Decada VIII, que fallando de Damião de Sousa Falcão, accrescenta como reforço historico: «irmão de Cristovam Falcão, aquelle que fez aquellas cantigas nomeadas de Crisfal...» E tambem no seculo XVI Fructuoso (resumido pelo P.e Antonio Cordeiro na Historia insulana) diz de Cristovam Falcão: «parente do Barão velho e do famoso poeta Cristovam Falcão, que fez a celebre Ecloga Crisfal das primeiras syllabas do seu nome...» Tambem nas edições de Ferrara e Colonia, feitas por curiosos sem criterio litterario, se repete a attribuição «que dizem ser de Cristovam Falcão, ho que parece alludir o nome da mesma Ecloga». Não se podem refutar por negativa estes testemunhos de homens de letras do seculo XVI, e que se reflectiram nos genealogistas.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


A habilidade, ou antes o processo habilidoso, ou, melhor, a tendenciosa redacção d'estes períodos não consegue iludir ninguem... Julgou talvez o snr. dr. Theóphilo Braga que nos desnortearia com esta subtileza de processos... críticos. Tal não conseguiu, como terá de reconhecer no foro íntimo da sua consciência.

Vamos por partes:

Foram os editores de Ferrara e Colónia que propagaram pela imprensa a lenda de que a paternidade da carta e ecloga de Crisfal era atribuida a Cristovam Falcão, e, fazendo-o, limitaram-se, com honestidade, a escrever: «que dizem ser... ao que parece aludir o nome da mesma ecloga». Ao contrário do que o snr. dr. Theóphilo Braga procura fazer incutir, tendenciosamente, os editores citados não repetiram uma atribuição de homens de letras do seculo XVI...

Os homens de letras do seculo XVI é que repetiram, fazendo-a certa, a atribuição feita com reservas pelos editores das obras de Bernardim Ribeiro em 1554 e 1559. Aceitaram [45] por boa, sem se darem ao trabalho de a verificar, uma simples atoarda.

Quem eram os editores de 1554 e 1559 das obras de Bernardim Ribeiro?

Di-lo, judiciosamente, o snr. dr. Theóphilo Braga na carta que vamos analisando:

Eram «curiosos sem critério literário».

Será a estes obscuros obreiros do século XVI que o laureado professor quer guindar á categoria de homens de letras com foros de autoridades?

Não, os editores de 1554 e 1559 foram realmente creaturas sem o menor critério literário, e por isso deram alentos á lenda forjada pelo vulgo; mas não resta a menor dúvida de que eram pessoas de bem, porque consignaram uma tradição vaga, sem se atreverem a registá-la como um facto positivo, indiscutivel, incontroverso. A cobrir a sua responsabilidade de editores conscienciosos, lá estamparam: «que dizem ser... ao que parece aludir.» Outros fossem eles, que asseverassem que as duas produções, carta e écloga, pertenciam a Cristovam Falcão incontestavelmente, irrefragavelmente!

Ignorava, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga que os editores da obra de Bernardim Ribeiro, ao produzirem as rúbricas respeitantes ao suposto autor do Crisfal, mencionavam apenas uma atoarda, uma vaga tradição?

Não; o venerado professor não ignorava isso. Testemunha-o o que s. ex.a escreveu a paginas 21 da sua chamada edição crítica das obras de... Cristovam Falcão:

«As rubricas do editor de Colonia, encerram [46] as tradições vagas, que, passados nove annos, ainda corriam ácerca d'aquelle infeliz namorado.»

Para que veio pois o snr. dr. Theóphilo Braga asseverar que tambem nas edições de Ferrara e de Colonia se repete a atribuição?

Mais diz o apreciavel escritor que «não se podem refutar por negativa» as atribuições que Diogo do Couto e Frutuoso fizeram, repetindo como certo o que os editores das obras de Bernardim registaram sob reservas.

Não se podem refutar por negativa, não; mas podem refutar-se cabalmente, pondo em confronto da obra poética atribuida a Cristovam Falcão a obra em prosa que ninguem ousará disputar ao suposto trovador.

E a admitir alguem, de reconhecida inteligência e critério, que o autor das cartas em prosa podia ser o poeta da Carta e da Ecloga de Crisfal, o mesmo equivaleria a aceitar como razoavel que Rosalino Candido pudesse firmar as obras do snr. dr. Theóphilo Braga, e que, consequentemente, o laureado professor de literatura fosse capaz de produzir a obra gigantesca de Victor Hugo.

É realmente desolador, para a fabula consagrada, que a Torre do Tombo conserve os autógrafos de Cristovam Falcão de Sousa!

7

«A ecloga de Crisfal não podia ser publicada pelo seu autor, nem pelo seu consentimento porque era uma inconfidencia de antigas relações amorosas com uma senhora que estava casada.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


[47] Esta bizarra revelação do snr. dr. Theóphilo Braga constitue, naturalmente, uma desenfastiada brincadeira de s. ex.a.

Pois qual é a obra lírica onde se não encontrem inconfidências semelhantes ás da ecloga de Crisfal?

O snr. dr. Theóphilo Braga, que aos catorze anos já se entregava a devaneios poéticos, não deixou certamente de dar publicidade a versos em que foi decantada alguma dama unida pelos laços matrimoniaes... E estamos convencidos de que ninguem chamou inconfidências aos suspiros poeticos do trovador açoreano. As inconfidências não servem de tema ás locubrações dos vates; onde existe arte, no bom sentido da palavra, não ha inconfidências, embora n'este ponto estejamos em absoluta discordância com a doutrina exposta pelo professor do Curso Superior de Letras.

Em toda a obra, prosa ou verso, de Bernardim Ribeiro, vive, palpita, a história ingénua da sua vida, o trama dos seus mal-aventurados amores por uma dama que trocou a afeição do poeta pela de um outro zagal. Foi um inconfidente o magoado Bernardim?―Não, foi um artista, foi um poeta apaixonado, alma de eleição que da sua dor fez um poema, como diria Goethe. E que adoravel e sentido poema nos legou o grande poeta bucolista!

Mas não vale a pena insistir mais n'este ponto. A afirmativa do snr. dr. Theóphilo Braga constitue, naturalmente, um gracejo inofensivo de s. ex.a.

8

[48]
«A edição sem data, de Lisboa, só podia ser feita por 1542, quando Cristovam Falcão estava em Roma; e quando Camões foi para Ceuta em 1547 na Carta que d'ali escreveu emprega muitos versos do Crisfal, que então andava no gosto.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Reproduzamos aqui o que o autor da Historia da Litteratura Portugueza escreveu a paginas 394/5 do seu volume Bernardim Ribeiro (edição refundida):

«N'esta folha volante não vem a Carta, nem as Cantigas e Esparsas incluidas na edição de Colonia. Parece mais uma vulgarisação popular, talvez uma das muitas que tornaram a Ecloga muy nomeada, e de que a reprodução de 1571, feita em Lisboa (existiu na Livraria de Joaquim Pereira da Costa) seria o typo que serviu para a reprodução de 1619, em que apparecem elementos só conhecidos pela edição de 1559.

«A folha volante sem data diverge do texto de Colonia profundamente; basta observar as variantes entre as lições das estrophes 51 e 52. Attribuimos a impressão das Trovas de Crisfal, a 1536, quando appareceram tambem em folha volante as Trovas de Dois Pastores (Ecloga III) de Bernardim Ribeiro.

«A vinheta do Pastor com capuz e cajado no Crisfal é a mesma que serve nas Trovas de dois Pastores; o typo gothico corpo 12 do titulo do folheto de 1536 é o empregado no texto do Crisfal. Tambem a vinheta da Dama, que vem no titulo, appareceu empregada em outra folha volante de 1536, intitulada Tragedia de los amores de Eneas y de la reina Dido

Procedemos ao mesmo exame a que o snr. dr. Theóphilo Braga sujeitou o pliego-suelto, e chegamos a egual conclusão. Algumas vezes nos haviamos de encontrar em concordância de vistas com s. ex.a. E porque o nosso pensar sobre o assunto egualava o do ilustre professor, escrevemos a pag. 119 do livro Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal), aludindo ao folheto sem [49] indicação de data nem de lugar de impressão:

[Figura]

«...mas reconhecendo-se, pelo confronto com outros folhetos, ser de 1536).

«Como muito bem observou o snr. dr. Theóphilo Braga, etc.»

Seguiu-se a transcrição do parágrafo do snr. dr. Th. Braga que atrás reproduzimos.

Mudou o abalisado professor de opinião quanto á data do pliego-suelto, querendo agora fixar-lhe o ano de 1542, como poderia fixar-lhe o de 1552 ou 1562, arbitrariamente.

Se ao menos s. ex.a tivesse a condescendência de indicar-nos quando seguiu os processos inductivos da crítica moderna! Ao fixar a data de 1536 ou quando arbitrou a de 1542?

Em folha apensa, damos uma reprodução foto-zincográfica das primeiras páginas dos tres folhetos que levaram o snr. dr. Theóphilo Braga a fixar a data da primeira edição conhecida das Trovas de Crisfal em 1536.

Se nos perguntarem se estamos dispostos a quebrar lanças para sustentar a antiga opinião do historiador da Litteratura Portugueza, responderemos, com toda a franqueza, negativamente. O que não podemos admitir é que se procure agora determinar-lhe com precisão a data de 1542, com o simples fundamento de que n'esse ano estava em Roma o seu suposto autor...

Alude o snr. dr. Theóphilo Braga ao facto de Camões empregar versos do Crisfal.

A explicação, a nosso ver, é muito simples:

Em Faria e Sousa, o insigne fabulista, autor muito da predilecção do snr. dr. Theóphilo, encontra-se uma afirmativa, que constitue em nosso juizo uma das raras que merecem algum crédito, não obstante a impureza da fonte.

[50] Referindo-se a Bernardim Ribeiro, escreveu Faria e Sousa: «poeta bien conocido y a quien llamava su Enio el divino Camões.»

Não desconhece isto o professor do Curso Superior de Letras, porque a pag. 131 da primeira edição do seu Bernardim Ribeiro reproduziu da Fuente de Aganipe o dizer de Faria.

Como demonstrámos no volume sobre o Poeta Crisfal, Camões glosou o magoado solau da Menina e moça, de Bernardim Ribeiro.

Em uma das cartas atribuidas ao cantor dos Lusiadas, encontra-se uma alusão directa ao autor das Saudades, indicando-lhe o nome: Bernardim Ribeiro.

Se Bernardim era o seu Enio, naturalíssimo é que Camões se deixasse influenciar pelo Mestre, imitando alguns dos seus versos.

A não ser que o snr dr. Theóphilo Braga queira concluir que, sendo Bernardim o Enio de Camões, Cristovam Falcão era o Enio numero 2 do mesmo poeta,―assim a modos de um Enio barato, para trazer por casa.

Prossigamos...

9

«Na edição de Lisboa vem duas estrophes supprimidas no texto de Ferrara e Colonia, por que continham uma inconfidencia. Isto leva a explicar como Cristovam Falcão tentaria apagar a paternidade da Ecloga fundamentando-se-lhe a imputação com o anagramma das primeiras syllabas do nome.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Salvo erro, o snr. dr. Theóphilo Braga quer [51] referir-se apenas a uma, e não a duas estrofes.

E á estrofe que reza:

Muitos pastores buscaram
mas um pastor por ser-te amigo,
e outro por ser-te enemigo,
um e outro se escusaram.
E dão-lhe logo comigo
gados que farão mil queijos;
mas como se despediam
é já mostrar que temiam
que o sabor dos teus beijos
na minha boca achariam!

Falava-se em beijos... Era uma inconfidência, e gravíssima, e por isso a estrofe foi suprimida nas edições de Ferrara e de Colónia! Está claro, e tam claro que, no dizer do snr. dr. Th. Braga, «isto leva a explicar como Cristovam Falcão tentaria apagar a paternidade da Ecloga...»

Ora admitindo por um momento que Cristovam Falcão houvesse sido poeta, e tivesse a lembrança de escrever uma écloga abundante em inconfidências, pespegava-lhe, sem mais nem menos, com um anagrama deduzido das primeiras sílabas do seu nome, para que toda a gente logo o apontasse a dedo como inconfidente?

De mais a mais, como quer o snr. dr. Th. Braga na sua exegese, se o suposto poeta empregasse os nomes verdadeiros de todas as personagens que a écloga alvejava, isso constituiria um apagamento de paternidade muito pouco apagado...

Todo o mistério, o discreto veu da fantasia, a cobrir a realidade dos episódios que a écloga do Crisfal menciona, equivaleria á ingenuidade infantil d'aquela antiga adivinha: «Branco é, galinha o põe»!

[52] Ponha se o snr. dr. Th. Braga no lugar do pseudo-trovador, imagíne que resolvia arquitectar uma écloga cheia de inconfidências, e diga-nos, com franqueza, se, desejando apagar a paternidade de um tal feito, assinaria a sua produção com o anagrama Theobra?

Logo os seus discípulos concluiriam, triunfalmente: «Cá temos mais um poema do Mestre!» E fosse lá s. ex.a convencê-los de que não era tal o autor da inconfidência!

10

«Os logares communs a Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão provam mais a favor da imitação de um discipulo, do que á fusão dos dois poetas, repetindo-se o mestre na decadencia.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Com o respeito devido ao professor de literatura, de modo nenhum podemos aceitar a sentença de s. ex.a

A subtileza do snr. dr. Theóphilo Braga, proclamando que os lugares comuns a Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão provam mais a favor da imitação de um discípulo do que á fusão dos dois poetas, é da natureza do conhecido artifício pelo qual se póde sustentar que cinco vintens não são um tostão, ou vice-versa!

Admitindo que Cristovam Falcão tivesse sido um imitador de Bernardim, como quer o abalisado professor, explica-se porventura que levasse tam longe a sua improbidade literária, que roubasse por inteiro versos e cantigas ao seu mestre, com a maior desfaçatez? [53] Pois o autor da Carta e da Eclóga de Crisfal, a ser um imitador, não teria o bom senso suficiente para reconhecer que, roubando versos de Bernardim, não alcançaria renome de poeta, mas o apodo de salteador literário?

Um imitador, por mais inexperiente e tacanho, não se aproveita dos textos que imita de maneira a que lhe possam apontar os versos palmados. Ou não será isto o que a lógica permite conjecturar?

Como ignoramos os processos inductivos da critica moderna, é possivel que estejamos em erro, e que da mesma ignorância resulte não alcançarmos o sentido das palavras do snr. dr. Theóphilo Braga quando afirma que o mestre (Bernardim Ribeiro) se repetiu na decadência.

Que repetições? e que decadência?

11

«Emfim ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem: o de Joana e Fauno, Aonia e Bimnarder, e o de Maria e Crisfal. São duas almas, sentindo em situações differentes.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem, diz o snr. dr. Theóphilo Braga na carta que, pacientemente, estamos anotando.

É verdadeira esta afirmativa?

―Não, não é verdadeira, e o professor do Curso Superior de Letras sabe muito bem que o não é.

Em 1897, ao publicar a sua edição refundida do livro Bernardim Ribeiro, confrontando versos [54] de Bernardim com os atribuidos a Cristovam Falcão, escreveu o professor de literatura.

«Vê-se que á medida que a situação dos amores de Bernardim Ribeiro seguia o mesmo desfecho dos amores de Cristovam Falcão, os dois poetas communicavam entre si os seus versos, sendo por este modo que se salvaram as poesias do auctor do Crisfal[6]


Ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem, diz s. ex.a, procurando agarrar-se a uma boia salvadora...

Mas tanto a paixão é uma só que o snr. dr. Theóphilo Braga, na écloga em que Bernardim se personifica sob o nome bucólico de Persio, viu n'essa personagem Cristovam Falcão! E estamos em crer que o ilustre professor não irá agora sentencear que a écloga primeira de Bernardim tambem foi elaborada pelo suposto trovador...

Pois se o snr. dr. Theóphilo Braga até concluiu que tanto Bernardim como Cristovão Falcão sofreram as agruras do carcere privado!

Como póde suceder que o distinto escritor já se não recorde do que escreveu a pag. 76/78 da sua edição refundida do livro «Bernardim Ribeiro», arquivemos aqui algumas das suas passagens:

«...Não ignorava Bernardim que o namorado de Maria tambem estivera em carcere privado:

Vi-me já preso; contente
A meu mal queria bem.

[55]
«Na Carta, que escreveu estando preso, e mandou áquella com quem estava casado a furto, diz Christovam Falcão:

Mal cuja dor se não crê
de prisão e de ausencia!

Bem se enxerga nos meus danos
que estou preso ha cinco annos,
afóra os que heide estar...

«Retratando o cuidado de Persio, diz Bernardim Ribeiro:

Logo então começou
Seu gado a emagrecer,
Nunca mais d'elle curou
,
Foi-se-lhe todo a perder
Com o cuidado que cobrou.

«Em Christovam Falcão lê-se:

Crisfal não era entam
dos bens do mundo abastado,
tanto como de cuidado,
que por curar da paixão
não curava do seu gado.

«E continuando o parallelismo, por onde se vê que os dois poetas eram mutuos confidentes, e se influenciaram, temos mais estes traços com que Bernardim Ribeiro retrata o Crisfal:

Sentava-me em um penedo
Que no meio d'agua estava;
Então alli só e quedo
A minha frauta tocava.

[56]
«E no Crisfal, quasi pela mesma maneira:

Alli sobre uma ribeira
de mui alta penedia,

d'onde a agua d'alto caía,
dizendo d'esta maneira
estava a noite e o dia...

«Bastam estas comparações para se reconhecer a communhão artistica entre os dois namorados poetas.»


Depois de haver escrito o que acaba de ler-se, como se compreende que o snr. dr. Theóphilo Braga venha proclamar, com a maior sem-cerimónia, que ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem!

Quanto a Fauno, nome pastoril que, em uma das éclogas, Bernardim dá ao seu amigo, confidente e colega Francisco de Sá de Miranda, quer o snr. dr. Theóphilo Braga que seja a personificação do próprio B. Ribeiro,―talvez para não confessar que nós acertamos na interpretação apresentada no Poeta Crisfal.

Temos certa curiosidade em saber se na futura refundição do livro sobre os poetas bucolistas o seu autor transferirá para Sá de Miranda o crisma de Persio, na impossibilidade de continuar a ver na mesma figura os traços de Cristovam Falcão...

De uns versos de Francisco de Sá, imitando uma canção de Petrarca, já o ilustre professor concluiu que o amigo de Bernardim sofrera a prisão, por motivo de amores... É meio caminho andado para que, na fantasia de s. ex.a, o [57] douto Sá de Miranda vá tomar o pouso do derreado Falcão.

A ver vamos... como dizia o cego, e cada vez via menos!

12

«Através de todo o hypercriticismo, o livro sobre Bernardim revela um trabalhador fervoroso, etc.»

Carta do snr. dr. Th. Braga.


Duas palavras apenas:

A nosso juizo, aquele através está a substituir, amavelmente, o advérbio apesar... É o que julgamos depreender da sequência da frase.

No nosso modesto e desvalioso estudo, o snr. dr. Theóphilo Braga apenas viu hipercriticismo, o que de modo nenhum póde agradar ao historiador da Litteratura Portugueza, que só emprega os modernos processos da crítica scientífica,―graças aos quaes... se vê obrigado a refundir amiude os seus trabalhos!

Continuaremos, impenitentes, a cultivar o hipercriticismo, deixando ao snr. dr. Theóphilo Braga o uso exclusivo dos seus processos, que não nos seduzem, com toda a franqueza o dizemos.



IV

A comunicação do presidente
da Academia das Sciencias
de Portugal


No seio da sociedade scientífica e litéraria, de que é ilustre presidente, proclamou o snr. dr. Theóphilo Braga, á porta fechada, isto é, em reunião privativa dos sócios d'aquela Academia, que a vida amorosa de Cristovam Falcão «oscila entre 1525 e 1526, sendo n'aquella data moço fidalgo, tendo pelo menos 12 annos».

Cristovam Falcão de Sousa era moço fidalgo em 1527, como se demonstra indubitavelmente pelo registo exarado n'um livro que existe no arquivo da Torre do Tombo, registo que reproduzimos com fidelidade a paginas 168/9 do nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro.

Na sua erudita comunicação á Academia das Sciencias de Portugal, afirmou o snr. dr. Theóphilo Braga que o suposto autor do Crisfal tinha pelo menos 12 anos á data de 1525...

Não indicou o douto académico o documento ou recurso histórico, em que se estribava para sentencear, sem admitir réplica, que o pseudo-trovador tinha pelo menos 12 anos á data de 1525, mas é possivel que s. ex.a esteja munido de [60] concludentes provas para demonstrar a justeza da sua afirmativa, se alguem se lembrar de contestar-lhe tam peremptória opinião.

Se o ilustre professor não possue a tal respeito documentos bastantes, póde dar-se o caso de alguem vir àmanhan, quando mais não seja para fazer pirraça a s. ex.a, declarar que Cristovam Falcão de Sousa, á data de 1525, não era ainda nascido, ou, quando muito, teria doze mêses, e não 12 anos...

Mas é possivel que o snr. dr. Theóphilo Braga tenha conseguido descobrir qualquer documento em que apoie a sua sentença. É até muito possivel!

O importante, por agora, é verificar que o laureado académico fixou o ano do nascimento do pseudo-poeta em 1513, poucos mêses mais, poucos mêses menos, se a lógica não é uma cantata para adormecer meninos.

Ora, sendo assim, vê-se que alguma cousa se ganhou com a publicação do nosso livro sobre o Poeta Crisfal, onde a paginas 176 escrevemos:

«Quanto a Cristovam Falcão de Sousa, moço fidalgo em 1527, por muito que se queira afastar a data do seu nascimento, não poderá esta ser fixada em ano anterior a 1510. Fixando-se o seu nascimento entre os anos de 1510 a 1515, é natural que se fique muito próximo da verdade.»

O snr. dr. Theóphilo Braga, em face do nosso estudo, escolheu o ano de 1513, cifra que se encontra compreendida entre 1510 a 1515, salvo erro.

Nós, porém, com inteira franqueza o dizemos, temos ainda suas dúvidas, e após recentes pesquizas, em que vamos prosseguindo, inclinamo-nos [61] a  ajuizar que o pseudo-ultimo eco do alaúde ainda não era nascido no ano de 1516...

Mas, para aclarar este ponto de capital importância, aguardemos a nova versão que o snr. dr. Theóphilo Braga tem na forja sobre os poetas bucolistas.

Além de ter modificado a sua antiga doutrina sobre a epoca em que floresceu o falso Crisfal, na sua comunicação ao grémio literário a cujos destinos preside, o snr. dr. Theóphilo determinou que a vida amorosa do homenzinho oscilara entre 1525 e 1526,―isto é no período ingénuo e viçoso dos doze para os treze anos, quando a suposta mulher amada pelo Xpouão contaria, na melhor das hipóteses, as suas fagueiras e menineiras dez primaveras...

Mas, decorrido menos de um mês sobre a comunicação... scientífica, o egrégio conferente emendou este seu parecer, como se verá quando analisarmos o artigo epigrafado Movimento litterario.

Segundo o extrato publicado no jornal «O Mundo», que condizia com os de outras gazetas, o snr. dr. Theóphilo Braga «evidenciou que na ecloga «Crisfal» transpareciam diversas situações da vida de Cristovam Falcão

Infelizmente, os jornaes não nos forneceram qualquer pormenor elucidativo sobre a referida evidenciação, pelo que ficamos, com verdadeiro pesar, privados de reconhecer a maneira engenhosa pela qual o distincto professor de literatura conseguiu demonstrar, urbi et orbi, que na magoada écloga de Bernardim Ribeiro transpareciam diversas situações da vida de Cristovam Falcão.

É possivel, porém, que na próxima futura [62] refundição do seu livro sobre os bucolistas, o snr. dr. Theóphilo Braga inclua um largo capítulo em que trate o assunto com o devido desenvolvimento, completando o extrato que os jornaes fizeram da sua apreciavel comunicação, com o que preencherá uma sensivel lacuna. Oxalá assim suceda.

Terminou o conferente a sua palestra por invocar, mais uma vez, Diogo do Couto e Gaspar Frutuoso; e mais uma vez afirmou que as duas individualidades (Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão de Sousa) não podem jàmais confundir-se.

Perfeitamente de acordo, n'esta parte, com o venerado professor!

Cristovam Falcão, o iletrado autor das Quartas, não póde jàmais confundir-se com Bernardim Ribeiro, o mavioso autor da Carta e da Ecloga de Crisfal...

Pelo que, implicitamente, fica demonstrado que nós não temos dúvida em adoptar uma ou outra das conclusões do presidente da Academia das Sciencias de Portugal, apesar de todo o nosso hipercriticismo, como está vendo o nosso prezadíssimo amigo!



V

O artigo «Movimento litterário»


Como os leitores viram, pela reprodução que fizemos no primeiro capítulo d'este trabalho, no artigo que publicamos nas colunas do diário «A Lucta», sob a epigrafe: «Os processos... scientificos do snr. dr. Theóphilo Braga», salientámos várias inexactidões contidas no capcioso desarrazoado que o professor do Curso Superior de Letras estampou no jornal «O Dia», a pretexto de dar notícia do movimento literário português no ano de 1908.

Não insistiremos sobre os pontos já visados, embora prestassem o flanco a mais largas considerações, mas nem o tempo nos é sobejo nem tam pouco desejamos abusar da benevolência dos que nos lêem, prolongando demasiadamente este comentário desenfastiado e despretencioso ás refutações embrogliadoras e falhas de sinceridade do snr. dr. Theóphilo Braga.

Sem a publicação do artigo Movimento litterário, aguardariamos pacientemente a futura refundição do livro consagrado ao estudo dos poetas bucolistas pelo egrégio professor, e só em face das novas exegeses fantasiadas pelo snr. [64] dr. Theóphilo Braga viriamos a público dizer o que se nos oferecesse, defendendo, o melhor que soubessemos e pudessemos, as conclusões que apresentámos no nosso trabalho sobre o Poeta Crisfal.

Não o quis assim o distinto escritor açoreano. Seja feita a sua vontade!


1

«...o snr. Delfim Guimarães publicava o seu livro Bernardim Ribeiro―O Poeta Crisfal, em que resume o já sabido da biographia do auctor da Menina e Moça, forçando interpretações de versos a significarem os factos que imagina.»

Do artigo «Movimento Litterario


Na opinião soberana do consagrado professor, no nosso livro sobre Bernardim Ribeiro resumimos o já sabido da biografia do autor da Menina e moça, e forçámos interpretações de versos a significar os factos que imaginámos!

Tem carradas de razão o implacavel crítico quando proclama, desdenhoso, que nós resumimos o que já era sabido da biografia do grande poeta bucolista.

Resumimos quanto pudemos, exageradamente talvez, o que já era sabido da biografia de Bernardim Ribeiro, mas muito de propósito assim procedemos, para que ninguem, em face do nosso trabalho, pudesse dizer com justiça que fôra nosso intento fazer substituir no mercado o livro do snr. dr. Theóphilo Braga pelo nosso.

É certo que nos poderiamos ter conduzido pela mesma fórma adoptada pelo consciencioso escritor ao resumir no seu Garrett o trabalho [65] desenvolvido de Gomes de Amorim, mas não quisemos seguir semelhante conduta, muito embora pudessemos invocar, como modêlo, o exemplo que nos fornecia o historiador da Litteratura Portugueza.

Não quisemos enveredar por esse caminho, e não estamos arrependidos, apesar do remoque com que fomos alvejados. Cada qual segue os processos que muito bem entende, mais em harmonia com o seu temperamento ou educação.

Resumimos o já sabido da biografia de Bernardim, é um facto; mas tivemos o cuidado de não aproveitar aquela descoberta mais que problemática que localizou a Quinta dos Lobos na Quinta da Piedade, em Sintra, e nem por um momento nos passou pela cabeça perfilhar as palavras do snr. dr. Theóphilo Braga quando vê «a persistencia do elemento mauresco, na paixão exaltada do poeta e no calor surprehendente da sua linguagem».[7]

Não seguimos tam pouco na esteira do eminente exegeta quando s. ex.a pinta, ao sabor da sua fantasia rocamboliana, Bernardim Ribeiro: «moreno, fino e enchuto de carnes, com a perdição no olhar e a fatalidade invencivel no amor[8]

Resumimos o já sabido da biografia de Bernardim, alto e bom som o declaramos; mas alguns erros tivemos ocasião de apontar ao biógrafo ilustre do autor da Menina e moça, para que os corrija, querendo, nas futuras edições, pelo que nenhum agradecimento nos deve, seja dito.

[66] Que teria perdido o renome universal do Mestre em se mostrar, não diremos mais benevolente, mas mais justo? Oh! o positivismo!...

Mas assevera o snr. dr. Theóphilo Braga que nós forçamos interpretações de versos a significarem os factos que imaginamos!

Onde viu s. ex.a essas interpretações forçadas?

Tendo-as visto, por que motivo não veio indicá-las em público, para exautoração do nosso hipercriticismo, para maior glória do seu laureado nome, para mais intenso fulgor da nossa História literária?

Forçâmos interpretações de versos!

Se o professor de literatura estivesse de boa fé, e entendesse realmente que nós haviamos errado a interpretação de versos de Bernardim, que lhe competia fazer, que lhe cumpria fazer?

―Indicar-nos onde haviamos errado, fazendo-nos ver que estavamos em erro; e quando s. ex.a nos convencesse da razão das suas corrigendas, ou reprimendas, acredite o snr. dr. Theóphilo Braga que havia de ver-nos confessar, com honestidade, sem o menor rebuço, que tinhamos errado, e não fugiriamos a apregoar que o ilustre censor nos aplicara umas palmatoadas merecidas.

Mas quando mesmo (o que não está demonstrado) tivessemos incorrido em erros ao interpretar versos de Bernardim, tinha, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga a precisa autoridade para os apontar por aquela fórma agressiva, com semelhante crueza?

―Não tinha. S. ex.a não póde arguir quem quer que seja de forçar interpretações, porque [67] ninguem como o professor do Curso Superior de Letras é useiro em amoldar interpretações de versos ao sabor da sua imaginação.

Para que ninguem nos incrimine de injustos para com o snr. dr. Theóphilo Braga, vamos demonstrar com exemplos colhidos em obras do Mestre algumas interpretações bizarras, que oferecemos ao critério dos que nos lêem:

N'uma das éclogas de Bernardim Ribeiro, o poeta bucolista, referindo-se a uma visita que lhe fez o seu amigo Sá de Miranda, escreveu a narrar o facto:


e neste mêo chegou
um pastor seu conhecido,
e que dormia cuidou.

Franco de Sandovir era
o seu nome, e buscava
ũa frauta que perdera,
que elle mais que a si amava.
Este era aquelle pastor
a quem Celia muito amou,
ninfa do maior primor
que em Mondego se banhou,
e que cantava melhor.


Veja-se como o snr. dr. Theóphilo Braga anotou estes versos:


«Deve entender-se que foi o pastor, que se banhou no Mondego, e não Celia, como pode inferir-se

Sá de Miranda e a Eschola Italiana, p. 49


[68]



Na écloga em que Bernardim adoptou o criptónimo Crisfal, descreve o poeta a aparição da mulher amada, que vê em sonho


vestida de arenoso,


ou seja de amarelo, a côr simbólica do pesar ou desespero, o que qualquer bronco namorado de aldeia sertaneja não ignora.

Pois o snr. dr. Theóphilo, querendo fazer da mulher amada por Crisfal uma freira cisterciense, interpretou a passagem aludida pela seguinte maneira:


«Crisfal viu a sua Maria vestida de côr de arenoso, ou do habito amarellado da Ordem cisterciense...»

Obras de Christovam Falcão, p. 11


Ora o hábito da Ordem de Cister não era amarelado, mas branco!

Não obstante, seguindo o mesmo critério, o distinto professor tambem quis reivindicar para o suposto poeta Falcão a paternidade de uma poesia de Bernardim Ribeiro consagrada a uma senhora que se vestiu de amarelo...


Té aqui me pude enganar,
mas agora que podeis
trazer a côr do pesar
pera mim só a trazeis...


que o snr. dr. Theóphilo Braga comentou pelo seguinte processo inductivo:


[69]
«Ora o amarello só podia ser côr de pezar no caso de representar a cúgula cisterciense; e em vista dos factos sabidos, só estava no caso de escrever esta cantiga Christovam Falcão, e não Bernardim Ribeiro pelo que se sabe da sua vida

Obras de Christovam Falcão, p. 12


Mas, felizmente para a memória do poeta bucolista, a poesia em questão foi uma das que o benemérito Garcia de Rèsende reproduziu no Cancioneiro Geral, publicado em 1516, quando Cristovam Falcão de Sousa... ainda andava de coeiros, se é que já pertencia ao numero dos vivos...

Ora que distinção concederia o ilustre professor áquele dos seus discípulos que, interrogado sobre a côr branca do cavalo de Napoleão 1.º, lhe respondesse que o sobredito imperial cavalo branco... era amarelo?





Em uma das suas éclogas, o poeta-filósofo Sá de Miranda, aludindo ao Amor, causa da desventura do seu camarada Bernardim Ribeiro, expressa-se por esta fórma:


Amor burlando vá, muerto me deja;
Tiene de que por cierto; a su merced
Como de señor vine; armó la red,
Puso me en prision dura, ende me aqueja;
Cada ora mas se aleja
De mi, mucho cruel. Quien me desmiente?
Ah que lo saben todos! quien ganó
El precio de la lucha, ese perdió!
Enemigo señor que tal consiente!


[70] Pois no Amor, no travesso, inconstante e cruel Cupido, o snr. dr. Theóphilo viu nada menos que a personificação do favorito d'el-rei D. João III, D. António de Ataíde, conde da Castanheira!

Para que os leitores não julguem que fomos nós que interpretamos mal quaesquer palavras do arguto exegeta, reproduzimos a sua anotação:


«...aquelle retrato do inimigo senhor que tal consente, bem se parece com o omnipotente valido o conde da Castanheira

Sá de Miranda e a Eschola Italiana, p. 206





Por um recente trabalho do nosso estimado camarada Hemetério Arantes sobre Frei Agostinho da Cruz, já os leitores não ignoram que o professor do curso Superior de Letras fez de um gato bravo... uma cavalgadura, e do Monte do Lobo... um lobo carniceiro que devorou, chamando-lhe um figo, a sobredita cuja cavalgadura!

Para fechar esta exposição, referiremos ainda mais um interessante episódio exegético da obra do Mestre:

Em uma das poesias líricas de Luis de Camões, alude o grande poeta á desventura que desde a infância o perseguia, como se vê dos seguintes magoados versos:


Foi minha ama uma fera; que o destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mi, nem haveria.
Assi criado fui porque bebesse
O veneno amoroso de menino...


[71]de que tambem se conhece a seguinte variante:


Por ama tive ũa fera, que o destino
Não quis que melhor fosse a que tivesse
Para o que elle de mi fazer queria...


Em face da segunda versão, concluiu o snr. dr. Theóphilo Braga, arguciosa e sibilinamente:

«Esta versão tira todo o sentido figurado á antecedente, e d'aqui se conclue, que Camões fora amamentado por uma alimaria, etc.»

Historia de Camões, Parte II, Livro II, p. 564


Esta ideia verdadeiramente original de interpretar os versos de Camões, dando-lhe por ama uma alimária, ou seja uma cavalgadura ou uma besta, corre parelhas com a interpretação dada á gineta de Frei Agostinho da Cruz.

Não se póde dizer que o eminente professor faça de um argueiro um cavaleiro, mas não ha a menor dúvida de que s. ex.a transforma um gato bravo e uma brava ama de leite... em cavalgaduras!

Pelo que respeita á ama de Camões, o que vale ao snr. dr. Theóphilo Braga é o facto do nosso grande épico não poder, com facilidade, escapulir-se do túmulo em que repousa no Panteão dos Jerónimos, si vera est fama! De contrário, o Trincafortes era capaz de fazer uma das suas.


Parece-nos que fica suficientemente demonstrado quem é que fórça interpretações de versos alheios a significarem aquilo que imagina...


[72]

2

«Como lhe nasceu no espirito a ideia de fazer esta descoberta? Pela impressão que lhe causára a leitura dos versos de Bernardim Ribeiro e os de Christovam Falcão―«dois poetas de temperamento semelhante, com eguaes influencias e educações litterarias, com eguaes episodios nos seus infortunados amores, e havendo entre ambos versos absolutamente eguaes.»

Do artigo «Movimento litterário»


Pela transcrição que o snr. dr. Theóphilo Braga indica, póde alguem acreditar que foram realmente aquelas as palavras por nós empregadas no nosso estudo. Não foram. O ilustre professor modificou a seu bel-prazer o que nós escrevemos, que se lê a paginas 6 do nosso livro sobre Bernardim:


«Muito embora o temperamento dos dois poetas fosse semelhante, mesmo muito semelhante, e eguaes as influências e educações literárias que houvessem recebido; embora fossem eguaes os episódios dos seus infortunados amores, é estranho que por fórma tam absolutamente semelhante traduzissem o seu sentir, revelassem o seu temperamento artístico, chegando a empregar versos absolutamente eguaes! etc.».
 

Porque não reproduziu, fielmente, o snr. dr. Theóphilo Braga aquilo que escrevemos? Estranha maneira de exercer a crítica... moderna!


[73]

3

«D'aqui o identificar os dois poetas em um unico; como conseguil-o? Considerou a individualidade poetica de Cristovam Falcão como uma lenda estupida formada pelos genealogistas, e formou o nome de Crisfal indo buscar á tôa ás palavras Crisma falsa, tirando-lhes as syllabas iniciaes para designarem a seu talante Bernardim Ribeiro.»

Do artigo «Movimento litterário»


Afirma o snr. dr. Theóphilo Braga que consideramos a individualidade poética de Cristovam Falcão como uma lenda estúpida formada pelos genealogistas... Onde encontrou s. ex.a a base em que firma a sua menos verdadeira afirmativa?

Vamos reproduzir o que escrevemos a paginas 9/10 do nosso livro, para desfazer a arbitrária interpretação do venerado professor.


«Cotejámos então as referências de Bernardim a Francisco de Sá com a alusão que na écloga de Crisfal haviamos interpretado como visando esse poeta, e qual não foi a nossa alegria, a nossa viva satisfação ao reconhecer que os versos de Crisfal que alvejavam Miranda condiziam perfeitamente com as referências das éclogas de Bernardim ao seu grande amigo e confidente! Não condiziam apenas: completavam, aclaravam, a nosso ver, essas alusões.

[74]
«Fez-se então uma grande luz no nosso espírito. Não se tratava de dois poetas muito parecidos, de um creador e de um imitador. Bernardim Ribeiro e Crisfal eram um ùnico poeta. O trovador Cristovam Falcão era o produto de uma lenda nascida da interpretação dada pelo vulgo ao anagrama Crisfal.

«E, para que o nosso convencimento mais se robustecesse, lá estavam os dizeres alusivos á ecloga de Crisfal da edição de Colónia, revelada pelo snr. dr. Th. Braga, e estudada pelo snr. Epiphánio Dias: «que dizem ser de Cristovam Falcão, ao que parece aludir o nome da mesma écloga.»

«Que dizem ser... ao que parece aludir...

«Isto, a nossos olhos, era decisivo. «Os editores de 1559 das obras de Bernardim Ribeiro, e antes de eles os de 1554, como depois viemos a apurar, tinham registado com relação á écloga uma fábula que devia datar da primeira edição das Trovas de Crisfal, etc.»


O que nós dissemos, pois, e isso sustentâmos, é que a individualidade poética de Cristovam Falcão nascera da errada interpretação prestada pelo vulgo ao anagrama Crisfal,―fábula que os editores de 1554 e 1559 das obras de Bernardim Ribeiro tinham registado, sob reservas.

Como haviamos nós de propalar terem sido os genealogistas que formaram a lenda, se os genealogistas, depois de 1554 e 1559, é que foram buscar as tradições vagas recolhidas pelos editores de Bernardim?

Onde estão os genealogistas anteriores ás [75] edições de Ferrara e de Colónia que se fizessem éco da fábula do Crisfal?

Ah! malfadados processos inductivos da crítica moderna!


Diz o snr. dr. Theóphilo Braga que nós fomos buscar á tôa as primeiras sílabas das palavras Crisma e falso para a nosso alvedrio designarem Bernardim Ribeiro!

Não foi á tôa, como inculca o nosso acerbo censor, que conseguimos apurar a constituição do criptónimo Crisfal; e que não foi á tôa sabe-o muito bem o implacavel critico, que não deixou de ler, e que até a reproduziu, a explicação que sobre tal facto demos:


«Alcançada a convicção de que Crisfal era um anagrama de Bernardim Ribeiro, e norteados pelo conhecimento de que nas suas produções o poeta mudava constantemente os seus nomes pastoris, com um pequeno trabalho de raciocínio não nos foi dificil deduzir a constituição do criptograma, que era formado pelas primeiras sílabas das palavras Crisma e Falso


E corroborando estes dizeres do prólogo do nosso livro (p. 10), escrevemos mais adeante (p. 82/83) ao tratar da interpretação da écloga atribuida ao suposto Crisfal, Cristovam:


«Bernardim deduziu o anagrama com que se denomina n'esta écloga das palavras Crisma e Falso, de que aproveitou as primeiras sílabas, formando assim a palavra Crisfal.

[76]
«Os nomes pastoris que figuram n'esta écloga, obedecendo á ideia que fundamentou a composição, são todos êles crismas falsos, sendo dificil profundar quaes as personagens reaes que o poeta pôs em scena, o que deu lugar a erradíssimas interpretações, contribuindo para que tomasse vulto a lenda, que resultou do próprio anagrama Crisfal, que foi tomado como deduzido dos nomes de Cristovam Falcão.»


Não foi á tôa mas seguindo uma orientação criteriosa, que alcançámos a verdade, que nenhuma subtileza conseguirá destruir já agora.

Outro-tanto não se póde dizer da maneira pela qual o snr. dr. Theóphilo Braga conseguiu, por exemplo: decretar os cantos de ledino, estampar como documento do século XVI um apócrifo contendo versos do século XVIII, e fazer Camões bacharel formado... em latim pela Universidade de Coimbra!

Se nós, invocando esses precedentes, ousassemos retorquir que á tôa costumava proceder o escritor que contraditâmos, caía-nos em cima o Carmo e a Trindade!

Á tôa!... É realmente forte, e não deixa de ofender.


4

«Mas, como se póde chamar estupida a lenda genealogica se os nomes contidos na écloga de Crisfal condizem com os seus parentes taes como o de Pantaleão Dias de Landim, seu avô, e a Joanna, que lhe denuncia o casamento clandestino, uma prima, como o notou o snr. Jordão de Freitas?»

Do artigo «Movimento litterário».


[77] Lenda genealógica, chama o snr. dr. Theóphilo Braga á lenda do Crisfal, como se fossem os genealogistas que a inventassem, quando s. ex.a muito bem sabe que estes não tiveram tal primasia... O caso está sobejamente debatido, e por isso não vale a pena perder mais tempo com tam ruim defunto.

Tratemos do Pantaleão...

Na eclóga de Crisfal, refere se Bernardim ao Val de Pantaleão...

O snr. dr. Theóphilo Braga, interpretando erradamente uma passagem da Pedatura do genealogista Alão de Moraes, em que se mencionava o casamento de uma parenta remota de Maria Brandôa com um João Patalim, escreveu a pag. 344 do seu livro Bernardim Ribeiro e o Bucolismo:


«Pelo Manuscripto já citado de Alão de Moraes acha-se noticia do aqui chamado Val de Pantaleão: D. Joanna, tia avó de D. Maria Brandão, casara a primeira vez com João Pantalião; etc.»


No nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro, desfizemos esse erro, escrevendo a pag. 159:


«O ilustre professor equivocou-se na leitura do texto. Não se trata de nenhum João Pantalião, como erradamente leu, mas sim de um João Patalim, que é o que se lê no manuscrito de Alão de Moraes, como verificámos por nossos próprios olhos.»


Desfeita essa interpretação, não se dá o snr. [78] dr. Theóphilo Braga por vencido, e vae agarrar-se a um avoengo de Maria Brandôa para justificar a referência ao Val de Pantaleão...

Quanto á Joana, o caso não é menos interessante...

Vejamos o que, no seu Bernardim Ribeiro e o Bucolismo (pag. 342), escreveu o snr. dr. Theóphilo Braga em 1897:


«Esta Joanna, que denunciou os amores de Crisfal e Maria, era D. Joanna Pereira, sua irmã mais velha; Maria era a mais nova, de cinco filhos que tinha o Contador João Brandão.»


Foi esta mais uma gaffe em que o snr. dr. Theóphilo incorreu, por haver confiado demasiadamente nos créditos do genealogista Alão de Moraes.

A pag. 162 do nosso livro sobre o Poeta Crisfal, desfizemos esse erro, escrevendo:


«Maria Brandão, a lendária amada do Crisfal, não teve nenhuma irman! era filha única!»


Em face da corrigenda, o distinto escritor não se sentiu com coragem para sentencear que Joana era irman natural de Maria Brandôa, mas procurou arranjar (iamos a escrever á tôa, mas não tivemos coragem) outra Joana, e, á primeira que encontrou á mão, chamou-a em seu auxílio.

Dera-se o caso de o snr. Jordão de Freitas, distinto funcionário da biblioteca da Ajuda, no louvavel empenho de auxiliar aqueles que [79] quisessem discutir a questão literária suscitada pelo nosso livro, publicar no «Diario de Noticias» o resultado das suas pesquizas nos arquivos, reproduzindo quanto julgou interessante para o estudo do problema.

Fez s. ex.a menção de uma parenta de Maria Brandôa com o nome de Joana...

Como um naufrago, que se agarra á primeira táboa que lobriga ao alcance da mão, o snr. dr. Theóphilo agarrou-se (no bom sentido da palavra, bem entendido!) á sobre-dita Joana, e, radiante de contentamento, exclamou:―«Estou salvo!»

E, julgando-se, realmente, salvo da rascada, escreveu ufano:


«...a Joanna, que lhe denuncia o casamento clandestino, uma prima, como o notou o sr. Jordão de Freitas.»


A esse engano de alma, ledo e cego, foi arrancá-lo o snr. Jordão, desapiedadamente na carta que, a propósito, dirigiu ao «Dia», e de que reproduziremos a parte essencial:


«O sr. dr. Theóphilo Braga equivocou-se na sua referencia a Joanna e ao que diz ter sido notado por mim.


...tive unicamente em vista assentar que Joanna Brandão não era tia avó de Maria Brandão, como erroneamente escrevera o sr. dr. Theophilo Braga, mas sim sua prima remota.

[80]
«Tão remota, direi agora, que era neta de um irmão (Diogo Lopes Brandão) do 4.º avô (Gonçalo Brandão) de Maria Brandão (Bibliotheca Real da Ajuda, 49-XII-28, pag. 259).

«Sendo assim, nem é presumivel que aquella chegasse a viver no tempo de Maria Brandoa, quanto mais que andasse a pastorear com ella, etc.»[9]


Veremos, depois de este insucésso, que nova Joana nos apresentará na primeira oportunidade o distinto escritor...

Quem sabe se a Joana do Crisfal não teria sido aquela encantadora Joaninha dos olhos verdes, que tanto enfeitiçou Garrett... Mas não; em caso contrário o autor das Viagens não deixaria de mencionar essa circunstância!





Na estrofe de Bernardim Ribeiro, na écloga Crisfal, em que a amada do poeta se refere a ter passado para o casal da Figueira do Val de Pantaleão, designações que a nosso ver disfarçam, sob falsos crismas, os nomes verdadeiros da casa e localidade para onde se transferiu, talvez após o casamento, a decantada Aonia, encontra-se, nítida, a alusão á ultima entrevista dos namorados:


«Quando contigo falei
aquela ultima vez,
o choro que então chorei,
[81]
que o teu chorar me fez,
nunca o esquecerei.
Foi esta a vez derradeira,
mas começo de paixão,
passando-me eu então
era o casal da Figueira
do Val de Pantalião.»


Achamos interessante reproduzir, n'esta altura, do capítulo XXVIII da Menina e moça, os periodos referentes á ultima entrevista de Bimnarder e Aonia para que os leitores, com maior facilidade, possam orientar o seu juizo, verificando a absoluta identidade entre as duas produções de Bernardim Ribeiro:


«...Buscando achaque de querer lá ir pera detraz das casas, levando Enis consigo, ouve tempo pera Aonia entrar onde elle (Bimnarder) estava então deitado, escontra a outra parte da parede, chorando, porque não vira Aonia ao passar, que bem se podera elle erguer. E como isto perdera, cuidava tambem que avia de perder a tornada; porque um mal nunca lhe viera sem outro; pelo que estava no maior pranto do mundo, antre si.

«Entrada Aonia, deteve-se um pouco, e sentiu que elle chorava, e suspirava baixo, de maneira que como, naquello, se forçava a si mesmo.

«Ella, para ver se poderia saber o porquê, que tudo desejava saber d'elle, deteve-se ainda mais; mas elle, com pensamentos muitos, que sobrevinham ao choro, mais o acrescentava do que o diminuia.

«Assentando-se então Aonia na borda d'aquella sua pobre cama, lhe pôs a mão, e quisera-lhe [82] dizer alguma cousa, mas não pôde, que lhe faleceu o espirito.

«Virando-se Bimnarder, e vendo a, tambem lhe faleceu o seu.

«Estiveram assi ambos um grande pedaço sem se dizerem nada um ao outro: e elle, com os olhos postos em Aonia, e Aonia postos os seus no chão, que, em se virando Birmnarder, tomou vergonha. Levando-os assi á terra, cobriu-se-lhe o seu fermoso rosto de uma tamalavez de côr, alem da natural; e soía dizer meu pae (que parte d'esta historia em seu tempo se soubera) que não parecia se não que viera aquella côr como por ajudar ainda Aonia escontra Bimnarder, tam formosa a ella, formosa, fizera.

«Mas, estando assi nisto elles ambos, e não estando elles ambos ali, chegou Enis muito rijo á porta, dizendo que se queriam já ir, e que a mandavam chamar.

«Assi, foi forçado levantar-se Aonia, e ir se, e Bimnarder ver tudo, e ficar.

«Mas Aonia, que bem via os olhos de Bimnarder como ficavam, tomou uma manga de sua camisa, e, rompendo-a, pera remedio de suas lagrimas lh'a deu, significando, na maneira só de como lha deu, o pera que lh'a dava; que parece que a dor grande que sentia não lh'o deixou dizer por palavras; mas, em lh'a dando, pôs os olhos nos seus, dizendo-lhe só assi:

―«Pesa-me, pois a minha ventura ou desaventura, não quis que eu vos deixasse de magoar com o que eu não quisera.»―

«E estas palavras lhe disse já fora da porta.

«E com ellas, e com o que sentiu ao dizer [83] d'ellas, duas e duas, lhe começaram as lagrimas a correr dos seus fermosos olhos, e, pelas suas faces fermosas abaixo, lhe iam fazendo carreiras por onde iam, que Bimnarder a tanto pranto convidou quanta era a rezão d'elle, pois perdia a vista.

«Foi tanto o choro, que não lhe abastavam os seus olhos ás suas lagrimas...»


5

«Os manuscriptos conhecidos de Bernardim Ribeiro andavam ligados com os de Christovam Falcão, como se vê pela descripção do n.º 180 da Livraria do Conde de Vimieiro: Obras em prosa e verso de Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão;»

Do artigo «Movimento litterário».


É com verdadeiro pesar que vemos o encanecido trabalhador recorrer a processos como o que ressalta da afirmação que deixamos transcrita, só pela caturrice de não querer confessar que errou...

O leitor desprevenido ficou julgando, certamente, por honra da firma que subscrevia o artigo Movimento litterario, que na livraria do Conde de Vimieiro tinham existido os manuscritos conhecidos de Bernardim Ribeiro, que andavam ligados com os de Christovam Falcão...

Pois, se tal ficou julgando, enganou-se redondamente.

O snr. dr. Theóphilo Braga adulterou a verdade dos factos, procurando talvez iludir-se a si proprio, pois não podemos admitir que s. [84] ex.a imaginasse, por tal processo, mistificar alguem. É até possivel, muitissimo provavel mesmo, que o ilustre escritor não pesasse devidamente as palavras de que se serviu, e que assim incorresse, na melhor boa fé, n'uma indesculpavel inexactidão.

Vejamos onde o snr. dr. Theóphilo Braga foi fazer a descoberta preciosa dos manuscritos conhecidos de Bernardim Ribeiro...

Ao n.º 180 do catalogo da Livraria do Conde de Vimieiro, como consta do tomo V da Colleçam dos documentos, e memorias da Academia Real da Historia Portugueza.

O distinto professor não indicou a fonte, certamente por lapso, mas nós conseguimos descobri-la sem carecer do auxílio de dunguinha.

Ouçamos agora a conferência do Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes, em relação ao codice N.º 180:


«Tem o volume que examinei 287 folhas, as quaes nos primeiros numeros eram 330, porem as que lhe faltão, parecem mudadas para outras Collecções, e sendo a letra, e papel de duzentos annos de antiguidade, pois a folhas 122 se acabão as noticias com a morte del Rei D. Manoel, que foi a 13 de Dezembro de 1521; se conserva este manuscripto inteiro, e em bom estado



(Traz a divisão do livro em 5 partes e segue:

[85]
«A segunda divisão deste livro consiste em algumas Memorias de successos raros de Europa, como são uma carta del Rei Ludovico de Hungria para o Emperador na ultima batalha que deu ao Turco, uma Relação dos infelizes principios de Luthero, e outros. Seguem-se cartas de homens celebres d'aquelle tempo pelo seu engenho, e graça, que entre as alusões jocoserias descobrem memorias particulares: deste genero são sete de Antonio Ribeiro Chiado, duas de Lourenço de Caceres, e outros. As obras em prosa, e verso de Francisco de Sá de Miranda, as de Bernardim Ribeiro, Christovão Falcão, André Soares, Francisco de Moraes, Gil Vicente, Duarte de Oliveira, o Barão D. Diogo Lobo, e outros Poetas antigos, servem de verificar as varias lições das impressas, e de restituir as manuscriptas.»[10]


Como se vê, por uma fórma irrefragavel, não se tratava dos manuscritos conhecidos de Bernardim Ribeiro, como não se tratava egualmente de manuscritos de Cristovam Falcão...

Tratava-se de uma miscelánea manuscrita, em prosa e verso, que continha produções de vários poetas, e, entre essas, as que se atribuiam ao suposto Crisfal. A simples citação do nome de Cr. Falcão logo após o de Bernardim não bastará para se ajuizar que no manuscrito havia cópia das poesias que nas obras de B. Ribeiro vinham atribuidas, sob reservas, ao suposto trovador?

Se nós, para documentarmos o nosso livro [86] Bernardim Ribeiro, tivessemos recorrido a expedientes semelhantes, como não seriamos julgados pelo snr. dr. Theóphilo!


6

«tambem o Arcediago do Barreiro, dr. Jeronymo José Rodrigues examinou no Porto um manuscripto analogo ao das edições de 1559, em que vinham a Menina e Moça, duas eclogas de Bernardim Ribeiro―«e até se acham no fim algumas poesias de Christovam Falcão, do que se faz menção no mesmo logar de Nicoláo Antonio.» (Innocencio, Dicc. Bibliog.

Do artigo «Movimento litterario».


O arcediago do Barreiro, invocado pelo snr. dr. Theóphilo Braga, era o arcediago do Barroso, cujos apontamentos manuscritos foram explorados por Innocencio.

Vejamos o que o benemérito bibliófilo escreveu a pag. 379 do seu Diccionario Bibliographico portuguez:


«Nos apontamentos manuscriptos do arcediago de Barroso Jeronymo José Rodrigues, de que já outras vezes me aproveitei n'este volume, encontro ácerca do auctor da Menina e moça o trecho que se segue:

[87]
«As obras de Bernaldim Ribeiro (que assim se acha escripto o seu nome no manuscripto que lemos, e assim diz Nicolau Antonio na Bibl. Hispanica, que vulgarmente era chamado) por sua muita raridade são difficeis de encontrar, e duvidamos que se hajam impresso todas. A Bibl. Lus. faz só menção da Menina e moça, ou Saudades de Bernardim Ribeiro. Além das impressões que alli cita, que são tres, faz Nicolau Antonio menção de uma, impressa em Lisboa em 1559, em 8.º, que em tudo tem muita semilhança com o manuscripto, que tivemos alguns tempos em nossa mão, e que vamos aqui extractar. O titulo em nada desmente do que traz a Bibl. Hisp., e até se acham no fim algumas poesias de Christovam Falcão, de que se faz menção n'este mesmo logar de Nicolau Antonio.―O titulo que se lê no manuscripto é: Historia da Menina e moça, por Bernaldim Ribeiro. Principia: «Menina e moça me levaram de casa de minha may para muito longe», e acaba: «Com demasiada ira disse contra a Donzela que ho aly trouxera estas palavras». Consta de historia em prosa, e inclue em alguns lugares poesias de gosto são e pura linguagem, etc. E além da historia, acham-se no manuscripto duas eclogas de que o abbade Barbosa talvez não teve noticia. Na primeira são interlocutores Persio e Fauno; principia: «Nas selvas junto do mar», e consta de trinta e quatro estancias de dez versos cada uma.―Na segunda são interlocutores Jano e Franco, principia: «Dizem que havia um pastor», e acaba: «Tambem tempo é tormento.»

[88]
«De tudo o que diz aqui o arcediago de Barroso concluo, que não só elle ignorou a existencia da moderna edição da Menina e moça, feita em Lisboa no anno de 1785, mas tambem só conheceu de nome as edições anteriores sem que lograsse ter presente algumas d'ellas, pois que a tel-as visto, nenhuma novidade encontraria nas duas éclogas que cita do tal manuscripto, onde pelo que se mostra faltavam todas as outras já então impressas.»


Não conheceu Innocencio a edição das obras de Bernardim Ribeiro publicada em Ferrara em 1554, porque se a houvesse conhecido logo concluiria que o manuscrito examinado pelo arcediago de Barroso outra cousa não era mais do que uma cópia incompleta d'essa edição.

Ignora o, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga?

Se o não ignora, para que veio a público com a citação incompleta da passagem do Diccionário de Innocêncio?

Bom serviço prestou o arcediago de Barroso trasladando o período inicial na novela na edição de 1554, conforme o manuscrito que teve entre mãos: «Menina e moça me levaram de casa de minha may...»


7

«Para que chamar ineptos aos editores de Ferrara de 1554 e de Colonia de 1559, por terem reproduzido esses textos manuscriptos como os encontraram?»

Do artigo «Movimento litterario».


[89] Chamámos ineptos aos editores das obras de Bernardim Ribeiro, e que não erramos em nossa apreciação demonstra-o evidentemente o próprio snr. dr. Theóphilo Braga, quando na carta que nos escreveu, referindo-se ás edições de Ferrara e de Colónia, diz terem sido feitas por curiosos sem critério litterário.

Se esses curiosos não fossem ineptos, podia porventura o ilustre professor negar-lhes critério?

As rúbricas da edição de Colónia, em 1559, são reprodução das de 1554, como o snr. dr. Theóphilo Braga não desconhece.

Pertencem as rúbricas da edição de 1554 ao seu editor ou este não fez mais do que reproduzi-las da primeira edição?

Sem que seja conhecida a edição principe das obras de Bernardim Ribeiro, não é possivel aclarar este ponto, mas o que ninguem póde dizer com autoridade é que taes rúbricas: «que dizem ser... ao que parece aludir...» pertencessem aos manuscritos do infortunado Bernardim.

«Por terem reproduzido esses textos manuscriptos como os encontraram», escreveu o snr. dr. Theóphilo Braga, procurando incutir que taes edições foram feitas sobre os manuscritos pertencentes ao Conde de Vimieiro e sobre o outro examinado pelo arcediago do Barroso!

A primeira edição das obras do poeta bucolista resultou dos manuscritos de Bernardim Ribeiro, recolhidos após a morte do apaixonado cantor de Joana, ou no ultimo período da sua desventurada existência, e dados á estampa por qualquer curioso sem critério literário...

E proclamando isto, que representa a expressão [90] do nosso sentir pessoal, estamos convencidos de que está com a nossa opinião o snr. dr. Theóphilo Braga, que sempre tem sustentado que as edições das obras de Bernardim se fizeram sobre os manuscritos encontrados no seu espólio....

Mudará s. ex.a de orientação? Até prova em contrário, não acreditamos.


8

«...o dr. Alfredo da Cunha deu alentos á grande descoberta...»

Do artigo «Movimento litterário»


«Grande descoberta», é como o snr. dr. Theóphilo Braga chama, ironicamente, ao resultado dos nossos trabalhos... Pequena ou grande descoberta, o facto é que està de pé, não conseguindo o abalisado professor destrui-la.

Compreendemos bem que isso seja pouco agradavel a s. ex.a, que tanto se havia empenhado em pôr um pedregulho sobre o caso do poeta Crisfal, mas nós, só pelo prazer de ser agradaveis ao ilustre escritor, é que não vamos ressuscitar o trovador Cristovam Falcão. Deixá-lo dormir em paz, serenamente.

Quanto a descobertas grandes, lembra-nos citar uma que in illo tempore fez o snr. dr. Theóphilo Braga...

Dirigia o distinto poeta snr. Joaquim de Araujo uma publicação camoneana, cujo título nos não ocorre.

Vae se não quando recebe uma comunicação do snr. dr. Theóphilo Braga... Uma descoberta [91] importante... Nada menos que um parente ignorado do grande épico Luis de Camões.

Chamava-se o homem Pero Camões, segundo o ilustre professor lera, radiante, em determinado texto...

Pois, senhores, na volta do correio, Joaquim de Araujo prevenia generosamente o Mestre de que este errara a leitura do texto... O Pero Camões do snr. dr. Theóphilo Braga era um simples e inofensivo pero camoês!


9

«No noticiario de outro jornal sairam affirmações absolutas, proclamando a sensacional descoberta, com uma sinceridade inconsciente que affasta de todo a ideia de ironia.»

Do artigo «Movimento litterário»


Por esta fórma pouco... generosa se referiu o snr. dr. Theóphilo Braga ás palavras de caloroso elogio com que o ilustre escritor snr. José Pereira Sampaio, em carta publicada no «Diario da Tarde», do Porto, valorizou com o prestígio do seu nome o fruto do nosso trabalho.

Contra a injusta apreciação do professor do Curso Superior de Letras, já lavrámos o nosso protesto, de amigos e admiradores de Bruno, no artigo que publicámos na «Lucta» e que vae transcrito no primeiro capítulo d'este livro.

Quando mesmo, o que não sucede, o ilustre escritor portuense estivesse em erro, era digna de todo o respeito a sua opinião, e não seria [92] nunca o snr. dr. Theóphilo Braga, com a sua consciente falta de sinceridade, quem teria direito para o arguir pela maneira insólita por que o fez.

Será, porventura, o positivismo inimigo inconciliavel da Justiça?


10

«A verdadeira descoberta pertence ao snr. Braancamp Freire determinando a epoca em que esteve em Flandres João Brandão Sanches, e quando elle morreu, dando nos assim a data em que existiram os amores de sua filha unica D. Maria Brandão, a do Crisfal, que plausivelmente se fixam em 1530. O documento de 1527 refere se a Christovam Falcão, com a tença de moço fidalgo leva a deduzir que nascera em 1512.»

Do artigo «Movimento litterário»


Fixa o snr. dr. Theóphilo em 1530 os amores do suposto poeta com a sua suposta amada Maria Brandôa.

Muito bem.

Admitindo que assim fosse, só depois de 1530 Cristovam Falcão poderia ter produzido a Carta e a Écloga que lhe foram atribuidas...

Ora como podia isto ser, em face dos processos inductivos da critica moderna, tam preconizados pelo snr. dr. Theóphilo Braga?

Ouçamos a lição autorizada do ilustre professor, que se lê a pag. 4 da sua chamada edição das obras de Cristovam Falcão:


«Se Christovam Falcão escrevesse depois de 1527, quando Sá de Miranda propagou as [93] fórmas da poetica italiana, teria então adoptado o verso endecasyllabo, a fórma da OUTAVA e do TERCETO, o SONETO, e teria perdido o conceito provençalesco dos poetas que seguiam o INFERNO DO AMOR; Falcão desconheceu esta nova poetica.»


Pela mesma maneira se exprimiu o snr. dr. Theóphilo Braga na sua edição de Bernardim Ribeiro e os Bucolistas.

Repudia s. ex.a o que com tanta clareza e precisão deixou estampado?

Seria caso para invocar o era, não era, andava lavrando...

Para o nascimento do pseudo-trovador, escolhe o snr. dr. Theóphilo Braga, em ultima análise, a data de 1512, sem se lembrar talvez de que por essa fórma caía em contradição consigo proprio...

Vejamos:

Na carta que nos dirigiu, escreveu o distincto escritor:

«...D. Maria Brandão, que Cristovam Falcão amou, sendo ambos muito crianças...»

Ora tendo Cristovam nascido em 1512, como afirma o snr. dr. Theóphilo Braga, e fixando-se as suas relações amorosas em 1530, como quer s. ex.a, tinha o mancebo quando começou a namoriscar os seus dezoito anos seguros...

A um rapazola de 18 anos ninguem com propriedade poderá classificar de muito creança, a não ser por troça,―salvo melhor opinião.


11

«Ha portanto a eliminar todas as relações pessoaes entre Cristovão Falcão e Bernardim Ribeiro, como julgamos nos nossos estudos, corrigindo a interpretação da Ecloga I e III de Bernardim.»

[94]
Do artigo «Movimento litterário»


Não só corrigimos a interpretação das eclogas I e III de Bernardim Ribeiro como todas as outras do desventurado poeta... Mas o snr. dr. Theóphilo Braga entende em seu alto critério que só ha a corrigir as duas que citou, e essa correcção reserva-se s. ex. fazê-la, certamente. Aguardemos a futura refundição do livro sobre os bucolistas, para ajuizarmos da fertilidade inventiva do ilustre professor,―de fantasia fertil em combinações, no dizer autorizado da senhora D. Carolina Michaëlis.


12

«Os logares comuns a Cristovam Falcão e Bernardim Ribeiro provam a distancia da edade que levou o mais novo a imitar aquelle que já era admirado, cujos versos, Camões, na sua carta de Africa intercalava na sua prosa.»

Do artigo «Movimento litterário»


Como comentário único, permitir nos-emos endereçar algumas perguntas ao snr. dr. Theóphilo Braga:

Estando Bernardim Ribeiro louco no ano de 1532, como o próprio snr. dr. Theóphilo tem sustentado, como explica o ilustre professor que no espólio do poeta bucolista fossem encontradas as composições atribuidas ao falso Crisfal?

Na edição refundida do seu livro sobre os bucolistas, [95] em 1897, o snr. dr. Theóphilo Braga explicou o facto da seguinte maneira:


«...os dois poetas communicavam entre si os seus versos, sendo por este modo que se salvaram as poesias do auctor do Crisfal.»


Ora não podendo o abalisado professor continuar persistindo em que Bernardim Ribeiro teve por amigo e confidente Cristovam Falcão de Sousa, como poderá s. ex.a explicar que entre os manuscritos legados por Bernardim se encontrassem as composições do... último eco do alaúde?

Para prevenir qualquer subtiliza de argumentação, é conveniente não esquecer s. ex.a que na écloga Crisfal se encontram lugares comuns a todas as éclogas de Bernardim Ribeiro e á própria novela Menina e moça.

E não esquecer egualmente que, após a publicação do nosso estudo sobre o Poeta Crisfal, já o snr. dr. Theóphilo Braga foi obrigado a reconhecer que: não podia continuar a admittir as relações pessoaes de Cristovam Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e dementado em confidencias de amor com um rapaz no viço da mocidade.

Bernardim nasceu em 1482, é bom não olvidar tambem.

Cristovam Falcão de Sousa nasceu em... 1512, conforme a ultima versão apresentada pelo articulista do Movimento litterário.

Os amores de Falcão e Maria Brandôa foram fixados pelo snr. dr. Theóphilo Braga, em ultima análise, no ano de 1530.

Ora na Carta de Crisfal, fala o poeta na prisão de amor que está sofrendo ha cinco anos... Logo, ou não ha lógica, uma das composições [96] do suposto trovador foi elaborada pelo ano da graça de 1535, quando Bernardim havia já três anos que fôra ferido pela desgraça que o levou ao hospital de Todos os Santos, onde veio a acabar seus desventurados dias em 1552.

Consignado o que fica exposto, aguardemos a resposta ás perguntas atrás formuladas, e, para fechar o capítulo, façamos nossos os seguintes versos de Bernardim:


Baste o que tenho dito
pera aver, por galardão,
tres regras de vossa mão,
pera resposta das quaes
......... fique o mais
que aqui escrever devera,
se o escrever podera.




VI

Uma patranha genealógica


Seguindo a lição de vários genealogistas, démos curso, no nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro, á atoarda que fazia Cristovam Falcão de Sousa descendente de certo John Falconet, cavalheiro inglês que viera para o nosso país na comitiva da desposada d'el-rei D. João I, Filipa de Lencastre. Antes de nós, os snrs. Epiphánio Dias e dr. Theóphilo Braga haviam incorrido no mesmo erro.

Publicado o nosso trabalho, honrou-nos o erudito escritor sr. Anselmo Braamcamp Freire com o seguinte esclarecimento, que registamos com prazer:


«...Julgo-me obrigado a advertil-o que publiquei um documento no Archivo histórico, suficiente para destruir a petarola inventada pelos genealogistas dos Falcões descenderem do tal Falconet. Catorze anos antes deste chegar a Portugal já existiam Falcões, proprietarios em Evora, e vassalos de D. Fernando (Arch. hist. III, 407.) É uma minucia que não influe em nada no seu têma; mas, repito, entendo dever meu avisál-o».


[98] Não será este, certamente, o único erro em que teremos incorrido no nosso trabalho, e de que nos penitenciâmos sem a menor relutância.

Errar é próprio dos homens, como afirma o conhecido aforismo latino; o que é condenavel é persistir no erro.

Não temos a estulta vaidade de haver produzido um trabalho sem defeitos, e de bom grado aceitaremos as correcções que nos ministrarem, e com que o nosso critério se conforme. Somos incapazes de persistir n'um erro por simples capricho de amor-próprio, indesculpavel em assuntos de natureza histórica.

Bem presentes conservâmos as palavras sensatíssimas do professor bracarense Pereira Caldas: «Em história, ha sempre que discutir, sempre que examinar, sempre que emendar, sempre que aditar.»



VII

O criptónimo «Fileno»


No numero do jornal O Dia, de 15 de dezembro de 1908, consagrou-nos o conceituado filólogo, snr. A. R. Gonçalves Viana, uma das suas interessantes Palestras filológicas.

É aquela que vamos registar, e que em seguida comentaremos:


«Delfim Guimarães, no seu livro recentemente publicado, e que faz honra á erudição portuguesa, com o titulo Bernardim Ribeiro, e o sub titulo O poeta Crisfal, aventa a idea de que o criptónimo Fileno seja o disfarce do adjectivo felino, latim felinus, procedente do substantivo felis, «gato», por alusão ao apelido Gato, do marido de Joana Tavares, sua apaixonada.

[100]
«Não se pode aceitar esta origem do dito nome, porque tal adjectivo não existia em português ao tempo do poeta. É êle modernissimo na lingua, pois nem Bluteau o incluiu no seu Vocabulario portuguez e latino, nem mesmo no próprio Diccionario portuguez de Morais e Silva figura tal adjectivo atè á 3.ª edição, feita no anno de 1823, «correcta e acrescentada.» Vê-se pois que a introdução do vocabulo felino é não só posterior, e muito, ao século XV, mas até aos começos do XIX, e que o poeta o desconhecia portanto.

«Assim, pois, o nome Fileno, masculino, foi talvez fabricado conforme o femenino Filene, que os gregos usaram, e cujo radical será o de Filipe, por exemplo.»


Em primeiro lugar agradecemos ao snr. Gonçalves Viana o cumprimento amabilissimo com que nos penhorou, que muito bem sabemos representar uma gentileza, que não um acto de justiça. A benevolência usada para comnosco por s. ex.a motivou um remoque do snr. dr. Theóphilo Braga, do que resulta tornar se ainda maior a nossa dívida de reconhecimento para com o sábio poliglota, o que temos a peito deixar registado nas páginas d'este trabalho.

Consignado isto, digamos o que se nos oferece sobre a palestra motivada pelo nosso livro:

Coube ao snr. visconde de Sanches de Baena a interpretação do nome Fileno como criptónimo de Felino, em alusão a Pero Gato, que o referido titular apresenta como marido de Joana (Aonia).

Nós não acreditamos na existência do Pero Gato do snr. Sanches de Baena, como com inteira franqueza deixamos exarado nas páginas do nosso trabalho; mas não nos repugnou admitir que o criptónimo invocado alvejasse a alusão [101] a um animal felino. E assim escrevemos a pag. 87 do nosso estudo sobre Bernardim:

«O anagrama Fileno oculta, provavelmente, um individuo que tinha por nome, apelido ou alcunha o nome de um animal felino. Seria Pantaleão? Seria Gato? Estamos em crer que o assunto ainda poderá ser resolvido, como outros muitos pontos por aclarar respeitantes á vida de Bernardim.»

E na mesma página, a propósito do nome de Lor, ou Lor-Vão, referido nalgumas edições da écloga de Crisfal, escrevemos nós:

«Desde que se apure, com segurança, quem fosse o marido de Joana etc.»

O não se ter ainda apurado quem fosse o feliz rival de Bernardim, não se nos afigura motivo para pôr de parte, por em quanto, a interpretação enunciada pelo snr. visconde de Sanches de Baena quanto a Fileno, aceite pelo snr. dr. Theóphilo Braga, e a que nós tambem demos curso, embora sob reservas.

O facto dos antigos dicionários não fazerem menção do vocábulo felino não constitue razão para que se abandone essa hipótese, que póde não ser exacta, mas que é sem dúvida racional. Como o snr. Gonçalves Viana muito bem sabe, desde que no latim existiam os vocabulos felis, felinus, com o significado de gato, ou respeitante a gato, nada mais natural do que um escritor ter introduzido, lógicamente, o termo português felino. E ninguem poderá contestar que Bernardim Ribeiro tivesse envergadura sobeja para crear essa palavra. Bacharel formado em direito, e poeta bucolista não ignorava certamente o vocábulo latino.

A ser exacta a maneira de ver do snr. Gonçalves [102] Viana sobre semelhante assunto, como poderiam justificar-se tambem os numerosos neologismos com que Luis de Camões enriqueceu a lingoa portuguêsa?

Hoje mesmo, após recentes trabalhos de dicionaristas distintos, quantos vocábulos portuguêses não falta ainda registar?!

A hipótese, porém, que o ilustre filólogo apresenta merece ser ponderada devidamente, sendo até possivel que s. ex.a tenha resolvido o problema quanto ao nome do marido de Joana Tavares, que poderia muito bem ter sido Filipe.

N'um pliego-suelto castelhano do século XVI, de que existe um exemplar na secção dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, ha um dialogo em verso entre as personagens: Alethio e Fileno.―Aleixo e Filipe? Talvez!

Em fim, parafraseando o que já escrevemos: Quando se apure com segurança quem foi o marido da mulher amada por Bernardim Ribeiro, estarà implicitamente resolvido este problema.



VIII

In terminis


Não estamos sós no combate que tivemos a satisfação de iniciar em prol da obra de Bernardim Ribeiro.

Ao nosso lado contamos a individualidade cheia de prestígio do snr. José Pereira Sampaio, que em breve defenderá em livro tese idêntica á nossa, demonstrando que o Poeta Crisfal é o bucólico Bernardim.

Se de estímulo carecessemos para prosseguir confiadamente na tarefa que nos impusemos, seria incentivo bastante o contarmos já entre aqueles que se confessam convencidos pelo nosso trabalho, alem de muitos outros espìritos esclarecidos, os nomes preeminentes dos srs. Anselmo Braamcamp Freire, José Caldas e dr. Sylvio Romero.

Não conseguiremos nós fazer vingar em nossos dias, por uma fórma absoluta, a obra de justiça a que metemos hombros? Não será dada essa satisfação ao ilustre escritor snr. José Sampaio?

―Que importa? As sementes estão lançadas, [104] o solo não é ingrato... As sementes hão de vingar; a verdade triunfará, alastrando, impondo-se...

Por fim, só nos resta endereçar, muito comovidamente, um aperto de mão, agradecido e sincero, a quantos―bons amigos, camaradas e simples conhecidos―nos teem bafejado com palavras de elogio e incitamento por motivo da publicação do livro que deu origem a este novo trabalho.

Amadora, 16 de março de 1909.




APRECIAÇÕES DA IMPRENSA

ao livro

"Bernardim Ribeiro

(O POETA CRISFAL)"




«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


Delfim Guimarães é um poeta e um contista que há muitos annos firmou brilhantemente o seu nome. Alma delicada de poeta, é, ao mesmo tempo, um prosador elegante e correcto que conhece a sua lingua e sabe maneja-la. Afastado de todas as egreginhas literarias, isento de todos os snobismos, sem perder tempo nos cenaculos dos cafés, Delfim Guimarães tem-se destacado e destaca se entre os da sua geração, sem dever nada ao reclamo.

Admirador entusiastico, apaixonado, de Bernardim Ribeiro, Delfim Guimarães apurou um facto da mais alta importancia para a historia literaria do seu paiz:―que Christovão Falcão e Bernardim Ribeiro são uma mesma entidade.

É essa demonstração, consciente, documentada, que o nosso amigo vem de fazer neste livro―Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)―que é digno de ser lido por quantos querem conhecer a historia das letras patrias.

A Delfim Guimarães, os nossos parabens pelo seu valioso trabalho.


(Do jornal O Mundo, de 16 de Novembro de 1909)




«Bernardim Ribeiro»
por Delfim Guimarães


É um livro de incontestavel valor, este que o sr. Delfim Guimarães acaba de publicar, editado pela Livraria Guimarães & C.a, da rua de S. Roque. Fructo de um aturado e consciencioso estudo, n'elle se demonstra que Bernardim Ribeiro e Crisfal representam um unico poeta, e que Crisfal é apenas um criptogramma formado pelas primeiras syllabas das palavras Crisma e Falso, não passando, portanto, de uma lenda a existencia do poeta Christovão Falcão. Como se vê, o assumpto d'este livro do laborioso e intelligente escriptor é de molde a interessar vivamente todos quantos se dedicam ao estudo da nossa litteratura patria.


(Do jornal O Seculo, de 16 de N, de 16 de Novembro de 1909).





«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


Subsidios para a história da literatura portuguesa, por Delfim Guimarães.―Lisboa, 1908. Livraria Editora Guimarães & C.a, 274 pág. 800 réis.


É o livro sensacional da semana que hoje finda. É o desabar de uma lenda secular. A ineptidão de uns editores quinhentistas insinuara a crença de que as trovas de Crisfal eram de Cristovam Falcão, cujo nome era representado pelo anagrama, formado da primeira silaba do nome e a primeira do apelido.

A lenda criou raizes; e, não obstante as hesitações e dúvidas de alguns criticos, ninguém, até hoje, contestara abertamente em publico a personalidade poética de Cristovam Falcão.

Mas Delfim Guimarães, estudando Bernardim Ribeiro, editorando-lhe as Saudades, e confrontando os trabalhos dos bucolistas do século XVI, chegou á convicção de que, tendo havido algumas personalidades com o nome de Cristovam Falcão, este nome não pertencia a nenhum poéta, e as trovas de Crisfal eram obra de Bernardim Ribeiro.

Documentando e justificando a sua convicção, acaba êle de dar á estampa o substancioso volume que hoje noticiamos.

No prefácio da obra, expõi o autor, com a devida lealdade, as circunstâncias e o processo [112] que o levaram á absoluta rejeição da referida lenda, e congratula-se justamente por ter agora a noticia de que o ponderado publicista Pereira de Sampaio (Bruno), tinha já adquirido convicção análoga, que esperava justificar em livro.

Metodizando as provas e a documentação de que o poeta Crisfal não é outro, senão Bernardim Ribeiro, Delfim Guimarães faz minuciosamente a biografia crítica do poeta, estuda e analisa a primeira edição das obras de Bernardim, dá nos a história e a genealogia do suposto poeta Falcão; e, depois, de nos dar a exegese de numerosos factos e documentos, cerra o seu volume com a reproducção da Carta e da Écloga de Crisfal, e de três poesias mais de Bernardim Ribeiro, até agora ignoradas.

Claro é que, de um livro de tal significado e alcance, mal se podem formular juizos e sentenças em meia dúzia de linhas do nosso registo bibliográfico; e temos de nos restringir a dar da obra ideia sumária, chamando para ela a atenção, e naturalmente o apreço, de quantos se interessam pelos mais momentosos problemas da nossa história literária.

Mas remorder-nos-ia a consciência, se cerrássemos já a presente noticia, sem significar a Delfim Guimarães a satisfação que nos deu o seu melindroso e arrojado trabalho, e o encanto com que repassamos os olhos pelo ingénuo e delicioso bucolismo dos avoengos da poesía nacional.

Formoso livro e serviço memorável.


Dr. Candido de Figueiredo

(Do Diario de Noticias, de Lisboa, de 28 de novembro de 1908).




O poeta Chrisfal


Delfim Guimarães: Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)―Subsidios para a historia da literatura portuguêsa―1908―Livraria Editora Guimarães & C.a―68, R. de S. Roque, 70―Lisboa.


Ha uns espiritos fortes, solidos―e que tanto abundam n'esta nossa bôa terra de Portugal―que hão de sentir-se escandalisados com a arrogancia d'alguem que, contra a opinião dogmatica e ensinamento incontestado dos grandes Sacerdotes, se abalança a demonstrar que os bucolistas Bernardim Ribeiro e Chrisfal (pretenso anagramma de Christovam Falcão) são uma e mesma pessoa; isto é: que o glorioso auctor da 1.ª parte da novella pastoral «Menina e Moça» é igualmente auctor da celebre peça poetica conhecida pelo nome da «Egloga de Chrisfal»―n'uma palavra, que o poeta Christovam Falcão nunca existiu e que a maioria das composições poeticas que andam com o seu nome pertencem de juro e herdade ao principe do bucolismo entre nós, a esse surprehendente Bernardim Ribeiro, que é, em toda a nossa litteratura, o vaso d'eleição d'onde mais trasborda o sentimento augusto da alma portugueza.

[114] Mas outra raça d'espiritos não menos solidos sorrirá piedosamente (e, n'este caso, o sorriso é uma outra fórma de nos sentirmos escandalisados) perante a utilidade proxima ou longinqua que póde adquirir-se d'uma descoberta d'esta ordem.

Que importa ao bem do individuo ou da collectividade de hoje, que uns versos repassados d'uma verdade sentimental, á força de sentida quasi incomprehensivel,―versos, demais a mais vasados n'uma trama ingenua, bucolica, pastoril, sejam obra d'um ou d'outro recuado quinhentista ou, mesmo, tenham sido levados á conta d'um lendario personagem que, como poeta, nunca tivesse existido, a não ser na phantasia d'uns novelleiros de profissão que, com o rodar do tempo, conseguiram guindar a sua improbidade litteraria aos pinaculos d'uma certeza irrefutavel?!

Pois essa arrojada impiedade e esse improductivo bysantinismo―esse magno escandalo―acaba de perpetral-os o meu velho amigo Delfim Guimarães, poeta de verdade, infatigavel estudioso, paciente investigador, acurado cultista em materia litteraria, com a publicação do seu recente estudo «Bernardim Ribeiro (o poeta Chrisfal)», cujo apparecimento estas ligeiras notas intentam celebrar.

O mesmo é dizer que me não sinto com forças para, pormenorisadamente, passo a passo, ir vincando as passagens exegeticas d'este trabalho masculo e delicado que revela, no seu auctor, uma erudição e um methodo que eu entendo precisos n'aquelles que se propuzerem critical-o.

Não é, pois, um artigo critico o que vou fazer; [115] mas se uma affirmação sincera e sentida, de valor nimiamente critico, me é permittido accentuar desde já, eu direi: Delfim Guimarães está na verdade. Christovam Falcão, poeta, nunca existiu. Chrisfal é um pseudonymo de Bernardim Ribeiro.

E isto porquê?!

Porque todos os que se occupam de Falcão o dizem pessoa de qualidade―pertencia á primeira fidalguia portugueza, diz o sr. dr. Th. Braga―e, quanto ao valor do seu estro, tanto era que mereceu ser confundido com Bernardim Ribeiro seu amigo e confidente, quando não seu predecessor. Como se explica, pois, que um tão illustre personagem não figure no Cancioneiro de Resende, onde aliás se encontram, com tão assombrosa profusão, nomes que, nem pela clareza da estirpe nem pelo fulgor do engenho, se impunham á consideração dos posteros?!

É crivel que o erudito, o dedicadissimo collector que se chamou Garcia de Resende―o homem, do seu tempo, que mais larga e intensamente privou na corte dos nossos reis―não tivesse noticia d'uma individualidade tão fortemente accentuada e tão parecida com o então e já apreciadissimo Bernardim?! Não me parece.

Seria qualquer despeito, qualquer d'estas pequeninas miserias que se transmudavam em acerbos espinhos d'odio (e ao tempo e antes e depois e sempre tão vulgares!) que levariam mesquinhamente o celebre collector do Cancioneiro a relegar, da convivencia dos seus 351 poetas, esse illustre Chrisfal e ao mesmo tempo (s Seria qualquer despeito, qualquer d'estas pequeninas miserias que se transmudavam em acerbos espinhos d'odio (e ao tempo e antes e depois e sempre tão vulgares!) que levariam mesquinhamente o celebre collector do Cancioneiro a relegar, da convivencia dos seus 351 poetas, esse illustre Chrisfal e ao mesmo tempo (segundo o ensinamento do sr. dr. Theophilo [116] Braga) a recolher, como de Bernardim Ribeiro, versos de Falcão?!

Não me parece. Gil Vicente, como é sabido, apodára cruelmente Resende, e nem por isso deixou de figurar no Cancioneiro.

Estes simples e, quero crel-o, contestaveis argumentos levavam-me de ha muito, a duvidar da existencia poetica de Christovam Falcão, só muito mais tarde posta em fóco, entre outros, por Faria e Sousa, cujos escrupulos de caracter são por demais conhecidos.

Mas a simples argumentação sobre cancioneiros nem sempre é de colher, como um facto recente me leva a constatar.

Ha dois annos (outomno de 1906) appareceu nas livrarias a seguinte publicação: Odysséa dos Tysicos―Album de Musicas para piano e canto, original de Raul Pereira, sobre versos de poetas portugueses? É obra musical do sr. Raul Pereira que, á falta d'outra indicação, entendo dever tambem consideral-o como collector das varias poesias que o album encerra.

A primeira d'estas poesias, posta em musica apparece sob um retrato com esta epigraphe: Guilherme Braga (1845-1874), e tem este titulo «A Jesus Crucificado», e é como segue:


A Vós, correndo vou, braços sagrados
N'essa cruz sacrosanta descobertos
Que para receber-me estaes abertos
E, por não castigar-me, estaes cravados.

A Vós, olhos divinos eclypsados
De tanto sangue e lagrimas cobertos:
Que para perdoar-me estaes despertos
E por não devassar-me estaes fechados.

[117]A Vós, pregados pés, por não fugir-me;
A Vós, cabeça baixa, por chamar-me;
A Vós, sangue vertido para ungir-me;

A Vós, lado patente, quero unir-me,
A Vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.


Devo confessar que ao ler este soneto nasceram-me duvidas―muito vagas, é certo―sobre a sua authenticidade quanto ao nome que o firmava. E como não o encontrasse entre as poesias colligidas nas Heras e Violetas, assentei, á falta de melhor solução, que se tratava de uma poesia solta, religiosamente recolhida por pessoa intima ou admiradora convicta do insigne e mallogrado poeta portuense.

N'isto estava, quando o acaso d'uma busca litteraria me levou a folhear, na Bibliotheca Publica, O Ramalhete, «jornal de Instrucção e Recreio» (2.ª série, n.º 165, 4.º anno) e a encontrar, a paginas 112 do vol. IV, o mesmissimo soneto, sem descrepancia d'uma unica palavra, sob esta assás curiosa rubrica:


«No momento derradeiro da vida humana, qual o estado de moribundo, nada excita amor e conforto como a doce inspiração de abraçar um crucifixo, unico remedio d'alma. Por este motivo fez o dr. Manuel da Nobrega o seguinte soneto: «A Jesus Crucificado»».


Portanto, teremos nós: os vindouros, que não leram o Ramalhete, a attribuir a Guilherme Braga (que, segundo o sr. Raul Pereira, nasceu em 1845, embora Innocencio nos diga 1843) [118] uns versos do dr. Manuel da Nobrega, que vieram á estampa em 1841.

Veiu isto a proposito da confiança absoluta a depositar nos cancioneiros. Verdade seja que entre Garcia de Resende e o sr. Raul Pereira (que eu não tenho a honra de conhecer), o unico elo que os prende deve ser, se não laboro em erro, o laço musical...

Outras razões, porém, antes do trabalho de Delfim Guimarães, me levavam a pender para o arrocho da não existencia poetica de Christovam Falcão. É certo que a Renascença produzira uma eclosão genial em todos os ramos da vida sentimental, artistica e scientifica do occidente europeu, e que nós tivemos largo quinhão nas benemerencias d'esse glorioso Sol―e tão grande que ainda hoje d'elle vivemos. Mas é igualmente certo que, por grande que fosse, e foi, a prodigalidade do estro que nos coube, não era natural que dois vultos geniaes, a um tempo, surgissem tão parecidos, tão irmãos na concepção sentimental, na realisação artistica e até―suprema coincidencia―nos azares da vida amorosa! Delfim Guimarães embrenha-se em trabalhos de genealogia e de exegese litteraria, pacientemente cuidados, para nos infiltrar o convencimento que eu, sem razões de peso e sem auctoridade para as formular, de ha muito sentia da existencia d'um só poeta na obra de Bernardim e na obra de Chrisfal.

É, pois, para mim um livro de consolação. Por um lado, simplifica, no meu espirito, um caso que se achava enredado nas malhas autoritarias, embora convencionaes, de nomes respeitados; por outro, entorna, no meu coração, o intimo, o ineffavel jubilo de ver alguem da [119] minha estima e do meu tempo elevar-se tanto, pelo trabalho intelligente e probo, n'uma manifestação eloquente de força moral e espirito combativo de que tanto carecemos.

E esta probidade litteraria não é coisa de pouca monta ou que alguem possa dispensar-se de a encarar com o mais profundo respeito, porque me hei de lembrar d'aquelle supremo prefacio do Disciple de Paul Bourget, quando elle se dirige á mocidade da sua terra: Dentro de vinte annos tereis em vossas mãos a fortuna d'esta velha patria, nossa mãe commum. Vós sereis a propria patria. Que tereis recolhido nas nossas obras? Pensando n'isto, não ha homem de lettras, por mais modesto que seja, que não deva tremer de responsabilidade...


Hemeterio Arantes.

(Do Diario Illustrado, de 2 de dezembro de 1908).





«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


Subsidios para a historia da litteratura portugueza, por Delfim Guimarães. 1 vol. de 278 pag. Livraria editora Guimarães & C.a 1908 Lisboa, typ. Libanio da Silva.


A velha sentença portugueza―o seu a seu dono viria muito a propósito, noticiando o apparecimento d'este livro, com que se pretende, e consegue a nosso ver, reivindicar para o nome do grande poeta quinhentista a autoria e a glória de differentes producções que inconscientemente andavam attribuidas a outros. E se não fosse a bella coragem do sr. Delfim Guimarães, nosso antigo e presado amigo, que sendo poeta muito primoroso é tambem investigador ordenado e pacientissimo, o deploravel engano continuar-se-ia por muito tempo, ou, peor ainda, não se desvaneceria jámais talvez.

Entre outras, a lenda de que existira um Christovam Falcão, pretenso poeta de tão alto valor como Bernardim Ribeiro, e, assim, auctor tambem de maviosos versos, principiara a correr mundo em 1554, dois annos depois de fallecido [122] este, e teria origem, parece, em certa nota posta n'uma edição pouco criteriosa feita n'aquelle anno, de differentes poesias, esparsas umas, outras logo colligidas após a morte de Bernardim, edição onde veem de mistura com a Historia de Menina e Moça, diversos motes, cantigas e églogas e entre estas, (diz a tal nota) «hũa muy nomeada e agradavel... chamada Crisfal, que dizem ser de Christovão Falcam, ho que parece alludir o nome da mesma egloga...»

D'isto, e de outras investigações pacientemente realizadas pelo sr. Guimarães resulta a presumpção de provir a dita lenda principalmente d'aquellas vagas referencias e a allusão que o editor julgou encontrar em o nome de Crisfal do facto de serem as duas syllabas de que elle se compõe eguaes ás primeiras dos dois nomes Cristóvam e Falcão. Mas isto, que não constitue prova e não passa de mera hypothese, teria de cahir redondamente, quando se verificasse que esse Falcão era homem de poucas lettras e, portanto, incapaz de produzir trabalho de tanta valia como é a Égloga de Crisfal.

E assim succederia talvez se o sr. dr. Theophilo Braga não houvesse, em má hora, pretendido transformar a hypothese em lei, apresentando como definitivamente adquirida para Falcão a paternidade d'aquella e de outras poesias de altissimo valor litterario.

Não seguiremos o sr. Delfim Guimarães na critica acerba, se bem que correctissima, com que se refere a este erro do sr. dr. Theophilo Braga e ainda a muitos outros. Este operoso escriptor dirá de certo da sua justiça, não deixando, d'esta vez, mal parada a sua fama de erudito. E, sendo como é, sempre consciencioso [123] nos seus trabalhos de historiador litterario, virá certamente á estacada, para explicar a razão do seu engano.

Muitos outros descobrimentos são indicados n'esta valorosa reivindicação, não se mostrando possiveis mais duvidas a respeito da não existencia de Christovam Falcão, poeta, e parecendo ao contrario definitivamente provado que o nome de Crisfal fôra um dos muitos pseudónymos e anagrammas adoptados por Bernardim Ribeiro nas suas obras. Tambem graças ao indefesso trabalho do sr. Delfim Guimarães ficará pertencendo irrevogavelmente ao poeta de Menina e moça não sómente a celebre égloga, mas ainda outras poesias attribuidas a diversos e que veem apontadas ou reproduzidas n'este volume.

Em compensação, porém, algumas até agora emprestadas ao bucólico poeta, lidima gloria das lettras portuguezas, terão de passar para outros, com o que, seja dito de passagem, a exceptuarmos o solau[11]Pensando-vos estou filha, que o sr. dr. Theophilo Braga deu, tambem levianamente, como de Bernardim, sendo aliás de Camões, nada virá a perder o nome de Bernardim Ribeiro―antes pelo contrario!

N'este trabalho notavel do sr. Guimarães, obra de paciente investigação e bem disciplinado criterio, faz-se referencia a muitos outros factos interessantes, que nos abstêmos de contar, porque do livro apenas pretendemos dar rapida noticia; mas todos os elogios serão poucos a quem com coragem estréme veio inteirar [124] a gloria de Bernardim Ribeiro que, desventuroso poeta, de uma parte d'ella havia sido espoliado.

Muito agradecemos a captivante offerta de um exemplar de Bernardim Ribeiro, com que fomos brindados pelo auctor.


(Da Mala da Europa, de L, de Lisboa, n.º 669, de 6 de dezembro de 1908).




Ainda Chrisfal


Longe estava de ver tão depressa e amplamente confirmada a minha asserção de que o trabalho de Delfim Guimarães «Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)» era, para mim, um «livro de consolação», quando o Diario de Noticias de 3 do corrente, sob a epigraphe «Academia de Sciencias de Portugal» me trouxe esse verdadeiro manjar (para lhe não chamar capitoso petisco...) espiritual á minha insaciavel fome de aprender.

É como segue a passagem, que me interessa da local jornalistica em questão:


«Em seguida (o sr. dr. Theophilo Braga) realisa uma communicação sobre Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão mostrando como a vida amorosa d'este oscilla entre 1525 e 1565, senão n'aquella data moço fidalgo, e tendo pelo menos 12 annos, ao passo que aquelle era já idoso; evidencia como na Égloga transparecem diversas situações da vida de Christovam Falcão, e termina por invocar as opiniões de Diogo Couto, Gaspar Fructuoso e outros que comprovam a existencia das duas individualidades que apesar de similhantes [126] n'algumas situações da vida, não podem jámais confundir-se».


Eu imagino estar vendo estas palavras cahir do labio venerando, sobre a douta assembleia, como outras tantas perolas que, depois de serem ali devidamente apreciadas, resvalaram cá p'ra fóra, para o monturo anonymo, offerecidas em repasto magnifico aos cerdos iconoclastas.

Bacorejemos, pois, as preciosas gemmas...

Diz o Mestre que a vida amorosa de Christovam Falcão oscilla entre 1525 e 1565, sem ficarmos sabendo se a sua vida poetica tambem oscilla dentro do mesmo periodo, isto é: se a actividade amorosa e a actividade poetica de Chrisfal se confundem, caminham a par-e-passo ou se, pelo contrario, é o amoroso que precede o vate, se este antecede o namorado.

Eu, por mim, se alguma coisa entendo n'esta complicada psycologia, estou em dizer que, em geral, as duas actividades se confundem, são isochronas, e, segundo este criterio, Falcão só poetou com exito desde 1525.

Não póde elle, pois, ter figurado no Cancioneiro de Resende, que tem a data de 1516, como o sr. dr. Theophilo Braga pretendia até ha uma duzia d'annos atraz―opinião que depois modificou no seu trabalho, sobre Bernardim Ribeiro, que veio á estampa em 1897.

Mas o Mestre, em 1897, deixou de lhe dar entrada no Cancioneiro pela subtil razão de que Chrisfal não poetára nos Serões da côrte por pertencer ao ramo pobre dos Falcões. Lembrança exegetica que nos leva a concluir que todos os poetas do Cancioneiro poetaram nos ditos serões [127] e demais a mais com a escarcella bem provida d'aureos recursos―embora muitas e muitas poesias d'aquella grandiosa collecção resvalem da casuistica amorosa, que é a caracteristica da poetica palaciana, para a lucta dos interesses em que se revela a necessidade do vil metal.

Mas agora que o insigne Professor colloca a vida amorosa de Falcão entre 1525 e 1565, pergunto eu: permanece este argumento para a sua exclusão do Cancioneiro ou teremos de assentar que Chrisfal n'elle não figurou pela simples razão de, em 1516, andar ainda com coeiros?

Naturalmente teremos de optar por esta ultima versão e, portanto, pôr de banda a sua amisade e apregoadas confidencias com o auctor das Saudades.

Fica de vez assente, pois, que Christovam Falcão não foi poeta do Seculo XV.

Proponho-me agora provar, currente calamo (como não pode deixar de ser tratando-se d'alguem que se não familiarisou com os processos inductivos da critica moderna... ) que Christovam Falcão tambem não foi poeta do Seculo XVI, como agora pretende o sr. dr. Theophilo Braga.

E isto porquê?!

Porque eu posso duvidar (ainda que me apodem de irreverente pedantismo) das, por vezes, arrojadas conclusões chronologicas do insigne Professor. Mais anno menos anno, mais seculo menos seculo são, para os grandes Generalisadores, coisas d'uma importancia mediocre. Outro tanto me não succede, quando a generalisação visa um assumpto basilar na essencia, no modo de ser do facto scientifico.

[128] E é este o caso. Cristovam Falcão foi poeta entre 1525 e 1565?!

Ouçamos o sr. dr. Theophilo Braga:


«Se Cristovam Falcão escrevesse depois de 1527, quando Sá de Miranda propagou as formas da poetica italiana, teria então adoptado o verso endecasyllabo, e a fórma da outava, do terceto, e trocaria pelo soneto o conceite provençalesco dos que ainda seguiam o typo do Inferno de Amor (Bern. Rib. e os Bucolistas, pag. 141)».


Na edição refundida do seu Bernardim Ribeiro, publicada em 1897, esta affirmação cathegorica permanece igual ou identica, como, aliás, não podia deixar de ser.

Demos de barato que se possa ter opinião diversa da do insigne lente do Curso Superior de Lettras, o que ninguem póde é contrariar a realidade historica, porque, como é sabido, contra factos não ha argumentos.

E esta realidade diz-nos que, depois de Sá de Miranda, não houve um uníco poeta que não tivesse experimentado as formas petrarchinas e o verso heroico.

Houve um dr. Antonio Ferreira que nunca em sua vida fez um verso de medida velha; houve muitos, e entre elles o proprio iniciador da poetica italiana, que não desdenharam a redondilha e os velhos agrupamentos metricos. De quem poetasse exclusivamente pelos antigos processos... não consta.

Logo, a não ser que rasguemos a logica do Mestre e a verdade da Historia, Christovam Falcão não encontra cadeira onde se sente, nem na [129] vasta saleta da poesia palaciana, nem no refulgente salão do Seculo de Quinhentos!





Uma passagem do meu ultimo artigo teve o condão d'excitar duas communicaçôes que amavelmente me foram endereçadas.

A primeira, d'um amigo, que me escreve: «Sobre o soneto attribuido a Guilherme Braga, devo dizer-lhe que o auctor do mesmo não é o dr. Manuel da Nobrega, mas sim outro poeta.»

Claramente, corri logo a casa d'este amigo que me aconselhou uma intervista com o insigne bibliophilo e bibliographo sr. Annibal Fernandes Thomaz, o que, para mim, foi d'um prazer espiritual, como, de ha muito, me não era dado gosar.

Annibal Fernandes Thomaz é pessoa familiar a todos que n'este paiz se occupam de livros e―coisa rara!―a todos sorri, a todos mette no coração e em todos tem um admirador dos seus vastissimos conhecimentos e, o que é mais, um amigo devotado das suas grandes qualidades.

Disse-lhe ao que ia; mas, como da nossa conferencia resulta uma resposta á segunda communicação que recebi, é bem que n'este momento aqui fique exarada essa communicação.

Trata-se d'um bilhete-postal anonymo, e, se quebro a minha velha praxe e o bom-conselho de todos de lançar para os papeis inuteis esta ordem de documentos, é porque se trata d'um assumpto litterario e o meu correspondente, por qualquer razão se não querer fazer conhecido, o que muito me contraria. Diz assim:

[130] «O soneto que v. reproduziu no Diario Illustrado tem mais de dois seculos. Bastava o estylo para o denunciar seiscentista; mas a prova positiva está em a Nova Floresta, terceiro tomo, tit. V, apopht. LIV. Permitta-se a um obscuro padre dizer mais. Com essa ancianidade de taes versos toma nova força o contra argumento de v. sobre o silencio dos cancioneiros a respeito de Crisfal. Na margem do soneto pag. 207, da edição da Nova Floresta de 1759 (4.ª impressão que tenho á vista) lê se o nome do autor assim: Do Doutor Manuel da Nobrega. Quem fez um tal soneto, tão seriamente engenhoso, apesar do gongorismo, e tão bem metrificado, havia de ter mais poesias: e sendo doutor, não era um desconhecido. Que temos d'elle na Fenix Renascida? Quem o conhece? Alguns annos ha, o soneto reproduzido anónimo em muitos livros devotos, foi publicado em o Novo Mensageiro do Coração de Jesus (revista piedosa mas de muita litteratura) com a indicação, que a minha memoria aproveitou agora, da Nova Floresta, e com uma nota que dizia ser o nome do Dr. M. Nobrega desconhecido dos bibliographos.»

Vamos agora, rapidamente, ao resultado das pesquizas com Fernandes Thomaz.

O soneto A vós, correndo vou, braços sagrados encontra-se a fechar uma dedicatoria a «Jesus Christo Senhor Nosso Crucificado» d'um curiosissimo livro de 1734 intitulado «Anacephaleosis medico theologica, moral e politica, etc., etc.», obra d'um tal Bernardo Pereyra, medico do partido da villa do Sardoal.

O meu primeiro correspondente, que conhecia o livro, attribuiu facilmente a Pereira a autoria [131] do soneto, por não reparar nas palavras que precedem a sua reproducção, e que dizem:

«...e finalmente como se consegue a gloria que é a melhor conclusão que se tira depois de sahir da Universidade do mundo para as Escollas do Céo; mas será bem, meu amoroso Jesus, que antes de tudo diga com hum devoto que hoje para renacer do estado da culpa ao da graça, que de vós espero, para seguir o caminho por onde não vá precipitado, mas antes com a vossa direcção fortalecido!

«A vós correndo vou, braços sagrados, etc., etc.»

Mas (e vae isto em resposta ao anonymo correspondente) tanto Barbosa, na sua Bibliotheca, como Innocencio, no Diccionario, citam Manuel da Nobrega, como auctor do Epicedio inconsolavel á morte do Ser. Principe de Portugal D. Theodosio que falleceu em 15 de maio de 1653 e como collaborador nas Memorias funebres de D. Maria de Athayde fallecida em 22 de agosto de 1649.

É livro muito interessante estas «Memorias funebres sentidas pelos engenhos portugueses na morte da Senhora D. Maria de Athayde». N'ellas se encontram poesias em portuguez, francez, hespanhol, italiano, latim, assignadas pelos nomes dos poetas mais illustres do tempo e, para não citar outros, bastará lembrar os de Soror Violante do Céo e D. Francisco Manuel de Mello.

Ao que parece tratava-se d'uma extremada formosura doublée (como hoje se diz) d'uma alma de eleição. O Doutor Manuel de Nobrega concorre a este florilegio poetico com um soneto e uma egloga. O soneto:

Aquelle bello Sol, que amanhecia, não desmerece, antes tem grandes ares de familia com o [132] que tem sido causa d'esta palestra... algo pesada.

Não quero, porém, terminal-a sem exarar o meu parecer de que o Soneto, embora culterano, tem tão pouco de gongorico que Guilherme Braga, ou qualquer outro grande poeta de hoje, não desdenharia assignal-o, se essa fosse a sua corda.


Hemeterio Arantes.

(Do Diario Illustrado, de Lisboa, de 9 de dezembro de 1908).




«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


Subsidios para a Historia da literatura portuguesa, por Delfim Guimarães. 1908―Liv. ed. Guimarães & C.a Lisboa―8.º, 274 pag.

Delfim Guimarães, Bibliographia: Prosa: Alma Dorida, com prefacio de Teixeira Bastos, O Rosquedo (scenas do Minho), Ares do Minho (contos).―Critica litteraria: A viagem por terra do sr. João Penha.―Verso: Lisboa negra, Confidencias, Evangelho, Não! mil vezes não!, Sim! mil vezes sim!, Sonho Garretteano, A Virgem do Castello e Outonaes.―Theatro:―Aldeia na Côrte, de collaboração com D. João da Camara. (3 actos―Th. D. Amelia), Juramento sagrado (1 acto, verso.―Th. D. Maria). Traduziu a Dama das Camelias, de Dumas, filho; reviu e publicou as Saudades de Bernardim Ribeiro e as Trovas de Crisfal, do mesmo auctor. Fundou e dirige a Bibliotheca Classica Popular. Collaborou longo tempo na Mala da Europa, Provincia, O Lima, Chronica, etc. Varias obras de Delfim Guimarães teem já 2.ª edição, estando algumas outras exgotadas.


[134] Desde longos tempos até este anno 1908 da era de Xpõ, como escreviam os nossos velhotes, tudo era suppor que, ahi por alturas de mil quinhentos e tal da mesma era do Senhor, viveu, floresceu, e ninguem mais soube d'elle, certo Crisfal, poeta e namorado, que toda a gente indicava como sendo Christovão Falcão, um Christovão Falcão que se sabe agora escrever como um carreiro e ter mais erros de orthographia do que cabellos tinha na cabeça... se a Historia não provar que elle era careca. Indicava se Christovão Falcão tacteando. Para manter a suspeição havia só o corresponder o pseudonymo Cris fal ás primeiras sylabas do nome do supposto poeta. Longo tempo a mentira prevaleceu e longo tempo os doutos acceitaram de boamente a patranha, uns supplementando-a com fabulações á priori, outros asseverando que tal era porque era e «por ser verdade passavam a presente que assignavam».

Caminhava tudo em doce paz quando Delfim Guimarães, publicando o livro de que nos occupamos, desfez a lenda, tombou os castellos e pôz a cousa nos devidos termos. Mas vamos ao que importa.

«De como e porquê Delfim Guimarães achou que Crisfal não passou de um pseudonymo de Bernardim Ribeiro e de cousas varias que ao deante se verão», é um capitulo que, n'esta critica, deve interessar o leitor, agora que já sabe que tal Crisfal nunca existiu.

Delfim Guimarães é um estudioso e um devotado. Manuseia os classicos com a mesma curiosidade com que aguarda o ultimo livro de Anatole France ou o novo romance de Octave Mirbeau.

[135] Ha tempo, dirigindo uma collecção, publicou as Saudades do nosso Bernardim, auctor que, por sua natural tristura e dulçorosidade, desde menino e moço mais o prendia e captivava. Tudo estaria bem até aqui se, mente cogitativa e emprehendedora, não scismasse em publicar uma Bibliotheca de Classicos animado pelo exito das Saudades. Uma Bibliotheca de vulgarisação, destinada a mostrar á alma do vulgo o escrinio das melhores joias dos nossos antepassados.

Anteriormente uma natural curiosidade o levara a estudar os poetas que se apontavam como maiores amigos de Bernardim: Sá de Miranda e Crisfal, o celebrado Christovam Falcão que hoje deve ás musas a celebreira que por seculos desfructou,―elephante que conseguiu passar por canario, o animal.

A extraordinaria semelhança de Crisfal a Bernardim, os mesmos lamentos, a mesma situação amorosa, os mesmos queixumes; a ausencia absoluta de noticias e referencias na obra de Sá de Miranda e Bernardim ao poeta coevo e imitador, tudo isto deu a Delfim Guimarães a certeza de que Crisfal e Bernardim era o mesmo, só, e altissimo poeta. Além d'isto nenhum documento da epocha autorisava a pôr a carapuça Crisfal em cabeça de Christovam Falcão. O mesmo editor de Bernardim, edição de 1554, onde se acha incorporada a «Egloga chamada Crisfal» escreve, referindo-se-lhe: «que dizem ser de Christovam Falcam, ho que parece alludir ho nome da mesma Egloga».

Estudado o contemporaneo Christovão Falcão, vê-se que elle era pouco menos de bronco e não poderia ser nunca o auctor da Egloga. [136] Adquirida a certeza, que era Crisfal? E logo, deductivo, Delfim Guimarães achou a chave. É crisma falso, pois que na Egloga se move a mesma passionalidade de Bernardim com supositicios nomes―falsos crismas.

O livro do escriptor é ilustrado com um fac-simile de uma carta do pretenso Christovam Falcão e acompanhado de uma arvore genealogica dos Falcões. De uma logica cerrada e inteligente, preciosamente documentado, é um trabalho collosal que dará echoantissimo nome ao seu auctor. E enquanto se não perder na memoria das gerações o nome do bardo amoroso, o triste Bernardim, o nome de Delfim Guimarães não se desacorrentará da gloria de ter focado com intensa luz um tão curioso e deturpado caso da litteratura portugueza.

Lá fóra esta obra faria não só a gloria mas o nome de um trabalhador. As Academias levar-lhe-hiam o seu fauteuil estofado, e os editores disputariam a honra de lhe pagar.

Cá dá desgostos, nada mais.

O illustre publicista José Sampaio (Bruno) chegára ás mesmas conclusões. Anselmo Braamcamp Freire vae publicar um trabalho curiosissimo sobre Maria Brandão; José Caldas é da opinião de que se achou a verdade. Quem resta? Carolina Michaelis, cuja opinião importa saber, e Theophilo Braga, que discorda.

As impugnações que Delfim Guimarães fez aos livros de Theophilo estão em aberto. E Delfim veio com este seu trabalho não só elliminar um Christovam da litteratura e uma Maria das muitas Marias enamoradas, mas fazer luz sobre uma poesia de Camões falsamente attribuida a Bernardim Ribeiro, e documentar [137] que sómente Sá de Miranda foi o introductor da Escola Italiana em Portugal. Bernardim Ribeiro foi o introductor mas das novas eglogas vergilianas.

Raro talento, muito estudo, aturada analyse, observação profunda e um grande serviço prestado á litteratura, eis como julgamos o livro Bernardim Ribeiro. Com ares impugnativos veio o sr. Jordão A. de Freitas no Diario de Noticias carretar materiaes para o rude e esforçado prelio a travar-se. Não crêmos que o haja. Theophilo Braga, porém, que tem estado silencioso, dirá de sua justiça. O trabalho de Delfim Guimarães é probo e consciencioso. Merece o applauso incondicional de todos, e que rejubile a litteratura que ainda tem artistas que, fructo de seu labor, lhe dão tão bellas obras.


Albino Forjaz de Sampayo.

(Do jornal A Lucta, de Lisboa, de 16 de dezembro de 1908).




«Bernardim Ribeiro»
por Delfim Guimarães


A obra que Delfim Guimarães acaba de publicar é o producto d'um lucido criterio aliado a uma habil quanto meticulosa investigação. Sem ser um erudito nem rebuscador d'archivos, Delfim Guimarães, antes de encetar quaesquer pesquizas, teve a maravilhosa intuição―ou elle não fosse um poeta―de que os admiraveis versos do Crisfal, desirmanados no decorrer do tempo da obra litteraria de Bernardim, constituiam com o poetico romance de Menina e Moça, reflexos d'um mesmo espirito, vibrações d'um unico coração.

É que o illustre critico interpretára com verdadeiro sentimento o genio do infortunado poeta, levando a tal ponto a sua predilecção por elle, que com as Saudades abrira essa galeria de publicações classicas portuguezas em edições populares vulgarisadas, cujo inicio no nosso meio litterario a Delfim Guimarães se deve.

Toda aquella paixão do enternecido bucolista das Saudades, a fluidez incomparavel d'essa linguagem que é na sua simplicidade uma mimica d'alma e tem a harmonia d'um fio d'agua gorgolejante, [140] tudo isso,―o sentimento, que é a vida na obra d'arte, Delfim Guimarães foi encontrar nas composições erradamente attribuidas a Cristovam Falcão.

Obtida a prova subjectiva de que o poeta das Saudades era o trovador do Crisfal―na realidade um criptogramma formado pelas primeiras syllabas das palavras crisma e falso―o distincto escriptor encetou a investigação historica do que para elle fôra um presentimento e pelo estudo feito sobre os documentos da epoca, seu confronto e interpretação, conseguiu destruir n'uma argumentação irrefutavel e cheia de brilho, a lenda feita tradição e cimentada pelo mais auctorisado critico da nossa litteratura, que o trovador do Crisfal nunca poderia ter sido Cristovam Falcão.

A carta d'este moço fidalgo a D. João III, que Delfim Guimarães transcreve na integra e que na edição de Theophilo Braga apparecera deturpada, é inquestionavelmente a prova mais evidente―e outras não houvesse com relação a datas―de que nunca o espirito trivial que alinhavou aquelles periodos―se é que ali os ha―idealisaria a enternecida ecloga do Crisfal, que é ainda, a alguns seculos de distancia, n'esta epocha em que a arte possue riquissimos processos de technica e a linguagem tanto ganhou em expressão emocional,―uma soberba joia litteraria.

Nesta obra, tão cheia de revelações, começa o auctor por fixar em bases positivas as étapes da infortunada vida de Bernardim, desde o seu nascimento no Alemtejo em 1482 até á sua morte no Hospital de Todos os Santos, de Lisboa, em 1552, submerso nas trevas horriveis [141] da loucura. Depois com o esboço dos seus amores da adolescencia e paixão tragica que votou a Joanna Tavares, que foi a mais intensa affeição de Bernardim e a inspiradora do seu triste trovar, entra-se nos capitulos da exegese, sendo todo o livro uma refutação completa das idéas correntes sobre a problematica personagem do trovador do Crisfal. Nêle se visionam muitos pontos de vista até então desconhecidos e se estabelecem novas pistas para norteamento dos estudiosos, as quaes, certamente, muito contribuirão para que todo o interessante enigma literario se desvele em absoluto.

Nas suas curiosas investigações, fez Delfim Guimarães preciosos achados que denotam uma grande subtileza nas suas faculdades de critico, como a da poesia de Camões, erradamente atribuida a Bernardim, que se acha no cancioneiro de Luis Franco, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, tão interessantemente descoberta, e o das tres poesias constantes d'um pliego-suelto de 1656, da mesma Biblioteca, que o distincto escriptor filia com boas razões no estro de Bernardim.

Mercê da linguagem castiça, tão saborosamente portugueza, de que o auctor se serve, assim identificada com o thema historico versado, a obra é por si só, e independente da maneira de vêr do auctor, o trabalho honesto de um escritôr que é ao mesmo tempo um artista, n'essa evocação, d'um tão forte relevo, das saudosas edades em que os poetas amavam mais sinceramente e eram menos complicados, a arte não sendo como hoje um métier lucrativo, mas a manifestação espontanea d'um espirito no vôo errante da inspiração.

[142] Fecha o livro um curioso estudo sobre a vida de Cristovam Falcão e sua genealogia, certamente o mais completo até agora.

Felicitamos Delfim Guimarães pelo seu valioso trabalho que vem deslocar cómodos preconceitos arreigados e abrir novos horizontes aos que se interessam―que são todos os portuguezes―pelo estudo da litteratura portugueza no periodo aureo d'esta nacionalidade.


(Do jornal O Dia, de Lisboa, de 9 de janeiro de 1909.)





«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


É esta obra que perpetuará o nome do seu auctor, se bem que Delfim Guimarães em precedentes trabalhos litterarios tenha já adduzido sobejas provas para que lhe possâmos reconhecer um elevado grau de intelligencia.

Com a publicação do volume cujo titulo encima esta noticia, o serviço prestado por Delfim Guimarães á historia da litteratura patria está sendo louvado tão extraordinariamente a ponto do sr. Albino Forjaz de Sampaio, primoroso chronista da Lucta, não ter duvida em afirmar que no Estrangeiro tal publicação franquearia ao seu auctor as portas d'uma Academia.

O livro apresentado é o producto d'uma ardua tarefa em que pacientes faculdades de investigação, alliadas a uma singular vivacidade, removem com cauteloso tino os escabrosos obstaculos que tão ingrato estudo frequentemente depára. Por isso é que, sem receio de contradicta, nos afoutamos a asseverar que em Portugal ninguem melhor do que Delfim Guimarães conhece o periodo da historia litteraria a que o [144] mesmo assumpto directamente respeita. E nem isso pode causar surpreza ao leitor illustrado, uma vez que a arrojada affirmativa do illustre publicista, que é por signal a negação da existencia de Christovam Falcão, como trovador quinhentista, demandava um minucioso exame analytico a todos os documentos litterarios de então; e nisso só a mais escrupulosa cautella conjugada com uma aguda perspicacia, como já deixamos dito, poderia lograr o exito desejado.

Os materiaes que Delfim Guimarães colligiu para invalidar a personalidade litteraria de Christovam Falcão, deixa-os elle dispersos nos varios capitulos do seu livro, os quaes sobrepostos uns aos outros, á medida que se vai avançando na leitura, introduzem em qualquer espirito a certeza da these que o auctor se propoz comprovar.

De envolta com os persuasivos esclarecimentos allegados em prol do seu proposito, o auctor rectifica raciocinios errados e affirmações insustentaveis de Theophilo Braga, se bem que o sabor acre d'essas frequentes correcções seja attenuado ou neutralisado quasi pelas assucaradas referencias ao passado de tão incançavel trabalhador.

Pelo volume a que estamos alludindo vê-se que a obra de Bernardim Ribeiro chegou para fazer a reputação de dous homens, vindo o nome de Christovam Falcão usurpar em seu proveito algumas das produções d'aquelle mavioso lyrico, e sendo, portanto, a sua memoria um nefasto saprophyta que do merito alheio foi vivendo durante um longo periodo de tempo. A duplicidade desapparece agora com as aturadas [145] canceiras de Delfim Guimarães que assim reivindica para o grande corypheu do bucolismo em Portugal todos os fructos do seu prodigioso talento, corrigindo um erro em que os bibliophilos laboraram durante seculos. D'aqui resalta―e é esse um dos evidentes intuitos do auctor do livro em questão―o desenho da verdadeira figura de Bernardim Ribeiro, com as proporções proprias da sua gigantesca estatura litteraria, em cima do seu elevado pedestal de gloria, pedestal a que algumas pedras foram subtrahidas para sobre ellas figurar o ficticio vulto trovadoresco de Christovam Falcão.

Em Portugal abundam os devotados enthusiastas de Camões e Camillo, apparecendo agora um ardente propugnador d'outro nome tambem illustre, a legitima-lo como uma das maiores glorias litterarias de que se pode ufanar um povo. Esse nome é Bernardim Ribeiro e entrelaçado n'elle apparecerá d'oravante o de Delfim Guimarães, que acaba de restituir a obra do immortal bucolista á sua primitiva integridade.


Antonio Ferreira

(Do Commercio do Lima, de Ponte do Lima, de 9 de Janeiro de 1909).


 


«Bernardim Ribeiro»


Com este titulo e o sub-titulo de O Poeta Crisfal, tambem o distincto escriptor a cujo nome, já tão merecidamente aureolado, fica feita referencia na rubrica anterior, publicou recentemente um interessante volume, apodado por esse proprio auctor de subsidios para a historia da litteratura portugueza, e que não é nem mais nem menos do que a demonstração a nosso vêr evidentissima, digam os mestres pilhados em deturpação o que quizerem, de que Bernardim Ribeiro e Crisfal são uma e a mesma pessoa, não sendo Crisfal pseudonimo de Christovão Falcão, mas sim um composto das primeiras sylabas das palavras Crisma falso, de que Bernardim Ribeiro fez uso. Percorrendo se, com olhos de ver, e com vontade de acertar com a demonstração explanada por Delfim Guimarães, todas as 200 e tantas paginas do volume em questão, adquire-se o convencimento de que ficaram por terra, uma a uma, «as pedras basilares com que o nome consagrado do sr. dr. Theóphilo Braga ergueu o monumento, aparentemente solido, que offertou ás lettras patrias, fazendo quase real, palpavel, uma miragem secular»―que [148] dava Crisfal como sendo Christovão Falcão, quando este não pertence senão ao dominio da lenda, sendo uma perfeita mystificação a sua pretendida existencia de litterato.

O trabalho de verdadeiro erudito, que representa o livro de Delfim Guimarães, assignala de um modo inconfundivel o seu alto valor de estudioso, de investigador benemerito e de operoso trabalhador das nossas lettras. Felicitando-o cordealmente por esta nova prova das suas excepcionaes qualidades, cumprimos apenas um dever.


A. B.

(Do Jornal das Colonias, de Lisboa, de 13 janeiro de 1909).





«Bernardim Ribeiro»


Temos retardado a noticia do apparecimento d'este livro notavel do illustre poeta e prosador, sr. Delfim Guimarães, porque quizemos consagrar á sua leitura algumas horas socegadas, afim de poder estudar convenientemente o problema litterario que em suas paginas se debate.

Esta obra é o resultado de longas e aturadas investigações e de um estudo conscienciosissimo, não só da obra de Bernardim Ribeiro, mas ainda da obra de todos os poetas, apontados como seus amigos e companheiros.

Cotejando os versos do iniciador do lirismo portuguez com os que se attribuem a Cristovão Falcão, o sr. Delfim Guimarães facilmente reconheceu que, embora pudésse admittir-se que a educação litteraria dos dois poetas tivesse sido a mesma, não era possivel que as suas tendencias esteticas fossem por tal maneira similhantes, que os seus versos chegassem a confundir-se. Um d'elles teria sido seguramente o imitador do outro.

Continuando nas suas indagações, e apreciando demoradamente a obra supposta contemporanea [150] de Cristovão Falcão, notou ainda o sr. Delfim Guimarães que era frequente Sá de Miranda referir-se a Bernardim Ribeiro nas suas obras poeticas, havendo tambem allusões repetidas, nos versos d'este poeta, ao seu amigo e confidente. Ao auctor do Crisfal não notou a mais leve referencia.

N'aquelle bello poema havia allusões que alvejavam claramente Sá de Miranda, e foi do estudo attento d'essas allusões, que perfeitamente condiziam com as referencias das éclogas de Bernardim Ribeiro ao seu amigo, que resultou chegar aquelle illustre escriptor a conclusões inteiramente satisfatorias.

A analise de varios documentos de caracter historico e juridico produziu no espirito do sr. Delfim Guimarães a convicção de que a personalidade litteraria de Cristovão Falcão não existiu, sendo a obra que se lhe attribue toda do autor das Saudades.

Houve, é certo, um Cristovão Falcão de Sousa, que foi moço fidalgo em 1527 e capitão da fortaleza de Arguim em 1545, mas este personagem, na opinião de Delfim Guimarães, era incapaz de escrever a mais insignificante das quadras de Bernardim Ribeiro.

Como se vê, é realmente muito notavel este livro, que os eruditos e todos os que se interessam pelo movimento litterario portuguez, certamente deverão apreciar pela intensa luz que projecta sobre um dos principaes capitulos da historia da poesia nacional.


(Do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, de 20 de janeiro de 1909).





«Bernardim Ribeiro»
por Delfim Guimarães


Não pode um povo viver sem ideal e esse ideal ha de ser como a flôr que firma as raizes no terreno proprio das suas tradições. O futuro ha de ser explicado pelo passado em que potencialmente está contido.

Assim, comprehende-se quanta importancia tem para a vida intellectual e artistica d'um povo o conhecimento de tudo quanto se refere á evolução litteraria dos generos e ás condições mesologicas em que os seus grandes prosadores e poetas produziram monumentos de dura.

É por isso que lá fóra se não considera trabalho inutil todo aquelle que consiste em escavar no passado, com paciencia e com intelligencia, para d'elle desenterrar uma ideia, uma verdade, a correcção d'uma data, a explicação de um texto obscuro.

É sobre este trabalho á primeira vista inglorio que philosophos e historiadores edificam as largas syntheses, cuja necessidade é redundancia encarecer para a comprehensão da psychologia d'um povo.

Entre nós, modernamente, nada ou quasi [152] nada se tem feito n'esse sentido. Os nossos manuaes de litteratura repetem cegamente o que estava dito e feito, antes da descoberta dos modernos processos de critica e interpretação do passado.

Apenas o sr. Theophilo Braga com louvavel tenacidade se tem consagrado á especialidade, nem sempre sendo feliz, não só pela sua tendencia a tudo systhematisar, forçando os factos para os encaixar nas suas concepções aprioristicas, mas tambem pela vastidão do assumpto que é impossivel ser abrangido pelo trabalho de um homem só, principalmente quando não teve quem lhe preparasse o terreno.

Estas considerações accodem-nos a proposito do livro de Delfim Guimarães―BERNARDIM RIBEIRO―que representa incontestavelmente o acontecimento mais importante em historia litteraria do nosso tempo.

O facto, que é já do dominio publico, é este: Christovão Falcão, que passava por auctor da ecloga «Crisfal», uma das joias da nossa litteratura, foi na realidade um mediocre fidalgo, incapaz de produzir aquella obra prima. O auctor d'esta foi, effectivamente, Bernardim Ribeiro, o meigo poeta das «Saudades» que serviu de modelo e estimulo a Luiz de Camões.

O livro de Delfim Guimarães, que é um modelo de investigação paciente e de critica leal não deixa duvidas a tal respeito. Seria descabido aqui repetir os argumentos que por ora ninguem desfez em que o auctor fundamenta a sua sensacional descoberta.

Limitamo-nos simplesmente a consignar que se Delfim Guimarães revelou uma extraordinaria sagacidade estabelecendo «a priori» a identidade [153] de Bernardim Ribeiro e do auctor de «Crisfal», a fórma cheia de probidade por que procurou «a posteriori» justificar a sua opinião honra não sómente as suas faculdades de investigador, mas tambem o seu caracter.

Quer nos parecer que, depois d'este precioso livro, a ninguem é licito alimentar duvidas a tal respeito. E se se perde para o quadro dos nossos poetas um nome, fica enriquecido e aureolado com gloria nova, mas que lhe pertencia o doce e encantador namorado da «Menina e Moça».

A Delfim Guimarães os nossos parabens e, com elles, os nossos agradecimentos.


(Do Jornal de Noticias, do Porto, de 8 de fevereiro de 1909).





Divagações

I

Só agora,―ainda que me não creiam―, só agora acaba de morrer, neste anno da graça de 1909, um dos grandes bucolicos da época de ouro dos escriptores quinhentistas!

Esse macrobio das letras, Mathusalem portuguez, de nome e de nação, era, sem mais nem menos, Chistovam Falcão de Sousa, que, embora quatro vezes secular, me parece, indefinidamente vivo continuaria se não o tivessem acaso assassinado...

Companheiro, amigo e confidente de Bernardim Ribeiro, houvera entre os dois, segundo Theophilo Braga, a infeliz conformidade de uma sorte infeliz; pois, ao passo que aquelle se desperdiçava por amores, tambem este por amores se perdia...

As celebradas «Trovas de Chrisfal» collocavam a figura de Maria Brandão, «com a casta graciosidade de uma virgem de Cimabue, dentro de paisagens que pareciam ter os traços do pincel de Giotto»; e toda a tradição popular, já assignalada pelo chronista Diogo do Couto, [156] era unanime em considerar esse nome de «Chrisfal» como formado das duas primeiras syllabas do prenome e appellido de Christovam Falcão. De outra parte, o poema das «Saudades», ou a «Menina e moça», de Bernardim Ribeiro, lembrava a desventurada paixão do poeta pelo typo feminil de Joanna Tavares, que elle disfarçava com o pseudonymo pastoril de «Aonia».

Tão notavel se afigurava a individualidade literaria de «Chrisfal» que, para a illustre romanista D. Carolina Michaëlis, elle teria sido o creador do genero bucolico em Portugal, e Bernardim apenas o seu immediato imitador; mas, tambem, a semelhança entre elles era tal que, conforme a judiciosa observação do professor Simões Dias, «as obras de um podiam passar como feitas pelo outro.»

E assim se devia entender e ensinar nas escolas, até que um novo escriptor lusitano, o sr. Delfim Guimarães, nos apparecesse com um trabalho recente e valioso, onde a toda luz demonstra, com grande escandalo dos mestres, que Christovam Falcão é, sem menos nem mais, o mesmo Bernardim Ribeiro, que adoptara nas «Trovas» o chris (ma) fal (so) de Chrisfal». E a «Maria» de taes versos tambem constituia, a seu turno, mais um cryptonymo de amor...

Por certo que existiu Christovam Falcão, e existiu naquelles mesmos annos, mas o sr. Delfim Guimarães prova que semelhante personagem era um ignorantaço de marca.

―Arranque-se-lhe, por conseguinte, e para sempre, o rutilante diadema de poeta com que lhe cingiram a cabeça romantica... Puramente emprestada era a luz que o sobredourava na [157] historia,―luz que lhe não provinha do merito, senão antes da phantasia dos criticos.

Em todo o caso, e emquanto houver a memoria dos homens, viverá o seu «renome», attribuido apenas á felicidade do «nome»...

Se elle, como escriptor, morreu, ha de ser, comtudo, evocado nas obras de erudição, ao menos, quiçá, como testemunho de quanto podem os enganos e a tardia justiça dos homens.

O trabalho consciencioso do sr. Delfim Guimarães honra a sua fina argucia, e nos leva a confiar no indefectivel juizo da historia cuja precaria relatividade é razão sobeja para nos empenharmos contra os «tortos» iniquos de que nos faça réos a precipitação ou a desidia. A averiguação do que pertence a cada um não transcende as raias da judicatura terrestre; e, para os que esperam na vida futura, parece que, perante o seu tribunal supremo, com jurisdicção apenas sobre o bem e o mal, não se levarão os problemas de preeminencia literaria, nem scientifica...

Á posteridade é que compete extremar as glorias de cada autor; sendo que, muitas vezes, a injustiça ou a ignorancia dos coevos, não impedem que as gralhas sejam finalmente despojadas do atavio das pennas do pavão.

Recordando o padre Manuel Bernardes o costume romano de ser punido, com o venablo e a nota de infamia, o legionario fanfarrão que enchia a boca de mentirosas façanhas, accrescenta que, se houvera de andar semelhante correição pelos ostentadores de engenho, muitos funccionarios exigiria a devida e cabal applicação da pena, que, na velha organisação militar, era privativa dos «tribunos». Verifica-se, porém, [158] que, com o correr dos tempos, nunca faltam «tribunos» da milicia literaria, para o castigo dos soldados, «que blasonam falsas valentias», ou para que se desmascarem os miseraveis impostores da sciencia. Se até os reis, desde Homero, e, como dizia Camões,


«Dão os premios, de Ajace merecídos,
Á lingua vã de Ulysses fraudulenta»


vêm mais tarde os divinos aedos, que, no tribunal dos pósteros, pleiteiam e ganham a causa dos que foram injustamente aggravados.

Não permitte, afinal, o criterio dos competentes, que um simples erudito, como Ptolomeu, usurpe, inappellavelmente, a fama devida ao saber mathematico de Hipparcho.

Este não é precisamente o caso de Christovam Falcão de Sousa, que não póde responder pelo erro dos que lhe enfiaram na modesta fronte uma corôa gloriosa de poeta. Elle, se vivo fôra, repugnaria acceitar o que a outrem pertencia de direito; pois, se os elogios que não merecemos, nos deprimem, em vez de exaltar-nos, o protesto da nossa consciencia não deve tardar quando aquillo que nos dão representa o resultado de uma espoliação alheia.

Reproduzindo a carta que ainda se encontra na Torre do Tombo, o sr. Delfim Guimarães apurou, e deixou de manifesto, que o suposto trovador tinha apenas a instrucção rudimentar dos moços fidalgos do seu tempo.

Se «idiotas», na accepção archaica de―«sem letras», eram, como sabemos, os barões da edade media, que até disso mesmo se ufanavam, a ponto de―«o condestavel Duguesclin nunca [159] ter querido sujeitar-se á doutrinação de um mestre», nem ainda na aurora da Renascença pareceu melhor a cultura de certos homens, apesar de illustres.

Francisco Pizarro, logar-tenente de Sua Alteza, cavalleiro da ordem de Santiago e conquistador do Perú, ouviu ler, deante do Grande Concelho dos nobres de Hespanha, a minuta do decreto que o fazia senhor de todas terras descobertas e por descobrir;―e, como, na expressão de Heredia, não pudesse assignar o protocollo,


«Fit sa croix, déclarant ne savoir pas écrire,
Mais d'un ton si autain que nul ne put en rire.»


Á vista de tal exemplo, não ha extranhar, no gentil-homem Christavam Falcão, nem as faltas de grammatica, nem as de orthographia, patentes em sua carta a el-rei, conforme o documento que ainda se conserva na Torre do Tombo... Mas essas faltas e a rudeza geral do estilo são bastantes para que não mais o tenhamos na conta de um emulo do suave e melancholico Bernardim Ribeiro, autor incontestavel das «Trovas de Chrisfal», depois de tantos argumentos sagazmente colhidos de uma profunda analyse psychologica e linguistica.

Um dos mais fortes indicios (aliás não aproveitado pelo sr. Delfim Guimarães) consiste na estrophe 77, das «Trovas», com o começo, em prosa, do poema das «Saudades»:


Por ti me vi desterrada
em estas estranhas terras
de donde eu fui criada,
e, por ti, antre estas serras,
[160] em vida, são sepullada:
onde, a se me perderem
a frol dos annos se vão;
ora julga se é rezão
das minhas lagrimas serem
menos daquestas que são!


Ha aqui uma clara allusão ao mesmo facto referido no trecho:


«Menina e moça me levaram de casa de meu pae para longes terras; qual fosse então a causa daquella minha levada, era pequena, não na soube.»


O sr. Delfim Guimarães deixa agora envolta em trevas a personalidade de Christovam Falcão; mas o raio de luz que deste se afasta, só serve de augmentar a gloria de Bernardim Bibeiro, cujo peregrino talento até hoje scintillava repartido pela auréola de dois nomes de poeta...


Silvio de Almeida.

(Do jornal O Estado de S. Paulo, de S. Paulo, Brasil, de 29 de março de 1909).





Divagações

II

Que extranha e mal debuxada figura não era a desse Christovam Falcão, a quem, de principio, a gente ignara, depois editores sem critica, e, por fim, os mesmos autorisados mestres, attribuiram a paternidade das «Trovas de Crisfal», sem outro algum motivo que só este, aliás, deveras pueril: conjugarem-se na palavra «Crisfal» as duas primeiras syllabas de «Christovam» e de «Falcão»!

Unicamente, pois, a sorte de seu «nome» lhe grangeára o dilatado «renome» de quatro seculos, cheios de uma admiração que tanto (segundo o costume) tinha de enthusiastica, quanto mais era infundada e gratuita.

Aos phantasistas nada, certo, importava que jamais fosse o ideal trovador, nem uma vez, referido no volumoso in-folio do «Cancioneiro» de «Rezende», em cujo indice se catalógam até as mediocridades pulhas daquelle tempo. Nem cuidaram tampouco que a sua unica pretendida obra lyrica (não sem causa deparada entre os papéis, que foram, de Bernardim Ribeiro)―versava Aos phantasistas nada, certo, importava que jamais fosse o ideal trovador, nem uma vez, referido no volumoso in-folio do «Cancioneiro» de «Rezende», em cujo indice se catalógam até as mediocridades pulhas daquelle tempo. Nem cuidaram tampouco que a sua unica pretendida obra lyrica (não sem causa deparada entre os papéis, que foram, de Bernardim Ribeiro)―versava o mesmo assumpto predilecto deste ultimo, [162] reflectia o mesmo gosto da paisagem, era fundida nos moldes do mesmo estilo, vinha molhada pelas lagrimas da mesma dorida commoção!

A todos que tenham olhos de ver, demonstra agora o sr. Delfim Guimarães, com miudezas de analyse, que certos passos das «Trovas», ou reproduzem heptasyllabos das pastoraes ribeirescas, ou correspondem a phrases similares do romancete das «Saudades».

Deixando, porém, de lado dezenas de significativas coincidencias esparsas, como entre o verso da egloga 4.ª:


«Coitado, não sei que diga,


e o da estrophe 21 de «Crisfal»:


«Mas, triste, não sei que digo»;


eu apenas aqui darei o que não expoz o novél escriptor portuguez, ou aquillo que elle só levemente adduziu.

Já na carta prefacial das «Trovas», cujo tom dagua chorosa nos suggere o «memento» do «Cancioneiro», os versos:


«Cuidai quanto nos quisemos,
e não vos possa mudar
dizer que vos podem dar
outrem que tenha mais que eu»,


perfeitamente combinam com a 1.ª egloga:


«Veio ahi outro pastor ter:
com o que prometteu ou deu
se deixou delle vencer»,


e com a «Menina e moça»:

[163] ―«...succedeu, no castello, um filho de um cavalleiro muito valído e rico nesta terra, que por meio de vizinhos desejou Aonia por mulher»;

―«...bem lhe pareceu que se não descontentaria Aonia do esposo, porque era bem aposto cavalleiro e dos bens do mundo abastado».

Note-se, mais, que a locução―«dos bens do mundo abastado», tambem inserta na 2.ª bucolica, reapparece na 5.ª estrophe de «Crisfal», cujo introito (conforme com as eglogas 1.ª, 2.ª e 5.ª) faz das «selvas junto do mar» o delicioso theatro dos amores dos dois zagaes.

A descripção desse local (de Sintra e de seu Val de Lobos), apenas esboçada no começo das «Trovas», melhor se delineia da estrophe 55 em deante:


«Vão alli grandes montanhas
de alguns valles abertas,
todas de soutos cubertas,
aos naturaes extranhas,
mas á saudade certas.
Cuberta era a fonte
de tam fresco arvoredo,
que não sei como o conte,
muito quieto e mui quedo,
por ser antre monte e monte.
Ao pé de um castanheiro
me pus, triste, assentado,
ouvindo o tom de um ribeiro.
Meus olhos e eu passámos
alli a noite em amores.
Naqueste tempo corrompe
a ave que chamam leal
o silencio do seu mal,
que é quando a alva rompe
e ao dia faz signal».


[164] Depois disso, abram o livro da «Menina e moça», e façam-me o favor de ler:

«Neste «monte mais alto de todos» (que eu vim buscar pela suavidade de outros que nelle achei) passava eu a minha vida como podia; ora em me ir «pelos fundos valles que os cingem dearredor», ora em me pôr do mais alto delles olhar a terra como ia acabar ao mar; e depois o mar como se estendia logo após ella, pera acabar onde ninguem o visse».

―«E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que acinte) determinei ir-me pera o pé deste monte, «que d'arvoredos grandes e verdes ervas e deleitosas sombras» é cheio, «por onde corre um pequeno ribeiro» de agua de todo o anno, que nas noites caladas, o rogido delle faz no mais alto deste monte um «saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o sono».

―«Não tardou muito que, estando eu assim cuidando, sobre um verde ramo que por cima da agua se estendia, «veio pousar um rouxinol».

Para completar a symetria e a belleza idyllica da pintura, nem faltou a esse quadro o vultinho animado da mesma «ave leal» de que nos. falavam as «Trovas».

Quanto ao par apaixonado, a referencia da 2.ª estrophe de «Crisfal»:


«Sendo de pouca edade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que se não viam,
se via na saudade
o que se ambos queriam».


ligada á da 77:


«a frol dos annos se vão»,

[165]e á da 84:


«Quando vos dei a vontade,
inda vós ereis menina,
e eu de pouca edade»,


em nada discrepa da do capitulo 18 das «Saudades» de Bernardim:


―«...a senhora Aonia, que ainda então era donzella d'antre treze ou quatorze annos...»;

―«...a barba um pouco espessa e um pouco crescida, que a elle traz, parece que é aquella a primeira ainda...»


Em relação ao poeta, a 2.ª egloga positivamente declara que contava os seus vinte e um de edade quando se fez «servidor» de Aonia.

Mas dos parentes desta a interesseira má vontade, que «Crisfal» vehemente assignala, assentou de lhe curar o coração doente de mulher pelo processo sedativo de um apartamento para «longes terras» (expressão egual da estrophe 7.ª e do 1.º capitulo da «Menina e Moça»).

Ainda na 2.ª egloga, Bernardim, que com os italianos aprendera o reavidado uso das allegorias de Vergilio, se manifesta como um pastor nascido «antre Tejo e Odiana»; e muito é para notar que nas «Trovas» tambem exista o mesmo verso (6.º da 30.ª estrophe).

Attingido o pegureiro (na 2.ª bucolica) do encantamento de amor,


«logo então começou
seu gado a emagrecer:
nunca mais delle curou.»


[166] E «Crisfal», outrosim (como réza a 5.ª estrophe),


«...por curar da paixão,
não curava do seu gado».


O mesmo pensamento se exprimiu, pois, aqui, sómente com tal ou qual superioridade artistica, que não é a injusta superioridade de Christovam Falcão sobre Bernardim Ribeiro, senão antes a deste sobre si proprio, no progressivo burilamento da fórma impeccavel.―Mas o artista, como que apostado em exceder-se cada vez mais, só achou a sua melhor expressão esthetica quando depois insistiu, na estrophe 22:


«descuido matou meu gado,
cuidado matou a mim».


A antithese (que tira de duas idéas oppostas a scintillação do choque de duas pedras) constitue quasi sempre o ultimo resultado de uma longa elaboração mental.

Ha, na melancholia das «Saudades», um topico onde o seu autor diz que, já de affeito ás dores, parecia viver nellas. E tal conceito assume, na 10.ª estrophe das «Trovas», uma formulação mais abstracta e geral:


«O longo uso dos danos
se converte em natureza».


A hypothese de «Crisfal» ser Christovam Falcão exigiria, portanto, que delle fosse, tambem, um simples reflector o nosso, aliás original, Bernardim Ribeiro; ou isso, ou, então, plagiario o outro...

[167] Gemeos intellectuaes, e ainda irmãos no infortunio de seus affectos, nunca se houvera visto, sequer em dois relogios, uma tão completa concordancia!

Mas, dentre o suffocante accumulo de provas contrarias, uma, sobretudo, victoriosamente resalta da egloga «Alejo» de Sá de Miranda, o «philosopho» amigo e confidente do «ternissimo» Bernardim Ribeiro.

Alli diz o Miranda, disfarçado sob o cryptonymo de «Antonio»:


«Vine por Ribero ver,
como otras vezes solia.»


Pois bem: Esse mesmo «Antonio» apparece na estrophe 32 de «Crisfal», que delle assevera:


«Aqueste é o pastor
que aqui vêo buscar-me.»


De semelhante parallelismo não ha concluir senão que «Ribero» e «Crisfal» representam um só e mesmo «pastor», o que vale dizer «poeta», na linguagem allegorica do bucolismo.

Demais:

Os versos que se acham em «Alejo»:


«Io sonava que me via
entre unas cerradas breñas;
de una parte i de otra peñas,
do nunca el sol descobria»,


traduzem no castelhano os da estrophe 7.ª das «Trovas»:


«esconderam-me antre serras,
onde o sol nunca era visto,»


[168] Ora, se (a paginas 188 de sua obra refundida sobre Sá de Miranda) reconhece Theophilo Braga, como todos, em «Alejo», uma segunda figura de Bernardim, deverá reconhecer ainda que «Crisfal», sendo «Alejo», é Bernardim tambem.


A gloria do sr. Delfim Guimarães foi de haver apanhado a verdade, que tão fóra andava da corrente unanime do parecer dos mestres.

Mas, já das muitas adhesões que elle conquistou, licito me seja destacar o voto preponderante da senhora dona Carolina Michaëlis de Vasconcellos,[12] como primeira autoridade―que ella o é―da moderna philologia portugueza.

Tambem, no Brasil, Sylvio Romero entende que estão reivindicados, de uma vez, os direitos de Bernardim Ribeiro «a essa bella parte da sua obra que a lenda lhe andava a tirar estupidamente»...


Silvio de Almeida.

(Do jornal O Estado de S. Paulo, de S. Paulo, Brasil de 5 de Abril de 1909).



Indice




Theóphilo Braga e a lenda do Crisfal



Pag.
I. Razão de ser d'este livro 5
II. O snr. dr. Theóphilo Braga descobrindo a verdade, e procurando enterrá-la 29
III. Anotações á carta que nos dirigiu o snr. dr. Theóphilo Braga 37
IV. A comunicação do presidente da Academia das Sciencias de Portugal 59
V. O artigo «Movimento litterário» 63
VI. Uma patranha genealógica 97
VII. O criptónimo «Fileno» 99
VIII. In terminis 103




Apreciações da imprensa ao livro:

«Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal)»


Do jornal «O Mundo», de Lisboa 107
» » «O Seculo»,  »     » 109
» » «Diario de Noticias», de Lisboa,―artigo do snr. dr. Candido de Figueiredo 111
[174]
» » «Diario Illustrado», de Lisboa,―artigos do snr. Hemetério Arantes 113 e 125
» » «A Mala da Europa», de Lisboa 121
» » «A Lucta,» de Lisboa,―artigo do snr. Albino Forjaz de Sampayo 133
» » «O Dia», de Lisboa 139
» » «O Commercio de Lima», de Ponte do Lima―artigo do snr. dr. Antonio Ferreira 143
» «Jornal das Colonias», de Lisboa,―artigo de A. B. 147
» jornal «O Primeiro de Janeiro», do Porto» 149
» «Jornal de Noticias», do Porto 151
» jornal «O Estado de S. Paulo», de S. Paulo, Brasil,―artigos do snr. Sílvio de Almeida 155



Notas:

[1] O normando é nosso.

[2] Este ponto de admiração pertence exclusivamente ao snr. dr. Theóphilo Braga.

[3] T. Braga.―Obras de Christovam Falcão, Porto, 1871―pag. 4.

[4] Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal), pag. 180.

[5] Torre do Tombo―Gaveta 20―maço 5―n.º 10.

[6] Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, pag. 63-64.

[7] Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, pag. 19.

[8] Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, pag. 19.

[9] Carta do snr. Jordão de Freitas no jornal «O Dia» em 2 de janeiro de 1909.

[10] Conferencia de 8 de Junho de 1725 pelo Conde da Ericeira, na Colleçam dos documentos e memorias da Academia Real da Historia Portugueza.

[11] Aliás, as glosas ao solau.

Nota de D. G.

[12] Reproduzindo integralmente o artigo do nosso ilustre confrade brasileiro, cabe-nos o dever de declarar que a insigne romanista, senhora D. Carolina Michaëlis, que nós saibamos, ainda não manifestou a sua opinião.

Nota de D. G.







Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 12 auxilados ... auxiliados
#pág. 28 impondo-a ... impondo-o*
#pág. 29 Pedron ... Padron*
#pág. 32 paternalmente ... paternalmente,*
#pág. 38 primeiro ... segundo*
#pág. 85 com o ... como
#pág. 90 empenhada ... empenhado
#pág. 94 com todas ... como todas*
#pág. 95 Falção ... Falcão*
#pág. 102 portuguesês ... portuguêses
#pág. 107 Chistovão ... Christovão


* correcções feitas com base na errata do próprio livro.

As figuras da página 34 e da página 49 estão ilegíveis, motivo pelo qual não foram adicionadas. Fica no entanto a sua indicação.







End of the Project Gutenberg EBook of Theophilo braga e a lenda do crisfal, by 
Delfim Guimarães

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